Monday, January 22, 2007

Piedade horrenda

Uma experiência do passado, mas ainda marcante:

......

Estava em um bar, em uma das primeiras mesas, logo à entrada, de onde podia observar os passantes. Uma chuva fina caía incessantemente, esfriando a temperatura. Em determinado momento avistei, do outro lado da rua, um garoto caminhar, carregando uma grande caixa de papelão. Perguntei-me por que estaria carregando a caixa e se haveria algo dentro dela. Parecia leve, à distância, embora fosse muito maior que ele.

Acendi um cigarro e voltei a atenção novamente para os amigos com quem dividia a mesa. Mais um pouco, e notei que o garoto estava agora deitado na calçada molhada e, tendo aberto a caixa vazia, protegia-se da chuva com o papelão.

Outra cerveja sobre a mesa, outro cigarro, sem desviar a atenção do garoto. Manifestei o desejo de falar com ele e os amigos tentaram demover-me da idéia. Claro que a situação de abandono do menino incomodava, mas ir falar com ele...

Pedi a conta. Podia não haver justiça social, mas devia haver algo que se pudesse fazer por aquela criança em particular.

Atravessei a rua e aproximei-me da criança. Estava coberta pelo papelão que, embora grosso, já se ressentia dos pingos de chuva. Ajoelhei-me a seu lado, sem escutar os conselhos dos amigos, e puxei o papelão para ver seu rosto. Perguntei-lhe, estupidamente, o que estava fazendo ali, por que não tinha ido para casa, se tinha fome. Ele não se moveu e toquei seus cabelos, sujos de terra. Afastou a cabeça abruptamente, mas insisti em afagar seu rosto, pedindo-lhe que falasse comigo. Queria conversar com ele, saber sua história, ouvir suas queixas. Ajudá-lo.

No entanto, o garoto mantinha-se de olhos fechados, ignorando-me por completo. Disse-lhe então que, se não queria falar comigo, devia ao menos estender a mão para que eu colocasse nela algum dinheiro.

Ao me ouvir, ele se voltou e abriu os olhos. Encarou-me. Seu olhar era de profundo ódio, como se eu o tivesse ofendido por querer dar-lhe dinheiro. Um momento apenas, um instante em que me vi impossibilitada de ser boa a meus próprios olhos, porque ele não me permitiria sê-lo.

Entretanto, o bom senso havia me abandonado completamente. Era uma apenas uma criança. Eu não devia me deixar intimidar. Devia fazê-lo entender que só desejava ajudar. Poderia dar-lhe algum dinheiro, o que talvez fosse de mais valia para mim do que para ele, mas eu tinha de fazer alguma coisa, mesmo que ele não quisesse. Era imperioso deixá-lo certa de que havia ao menos tentado ajudar.

Insisti, quando voltou a fechar os olhos e dar-me as costas. Não ia entender que eu precisava ajudá-lo? Não compreenderia que precisava de minha ajuda?

Numa determinação rara em mim, segurei sua mão com força e tentei abri-la, para colocar nela uma nota. Ele a mantinha fechada, forte, determinada, num gesto que refletia toda sua disposição a meu respeito.

Travamos uma nova luta silenciosa, desta vez para que ele abrisse a mão e recebesse minha oferta generosa: uma nota que, afinal, talvez lhe pagasse muito mais que o jantar e o ônibus para casa.

Não demorei a perceber que perderia também esta batalha. Tratava-se apenas de uma criança, mas tão consciente do que não queria, que resolvi não forçá-lo mais.

Toquei seus cabelos novamente, acariciei seu rosto e disse-lhe que ia deixar a nota a seu lado. Se não a quisesse, que a jogasse fora, mas era dele.

Ao afastar-me, a única coisa em que pensava, em que conseguia pensar, era na necessidade de lavar as mãos.

Afinal, tinha tocado em um menino de rua.

2 comments:

Anonymous said...

Essa resistência em receber ajuda do gurizinho não lembra a história do mendigo orgulhoso do Voltaire?

Já aconteceu algo semelhante comigo.

E teve uma outra ocasião em que fui ajudar um bêbado que tinha aberto a cabeça na calçada do bar em que eu estava e além de receber um 'xingão' do cara, um outro mendigo tomou meu conhaque enquanto estava distraído. :)))

Conheço alguns meninos de rua do tempo em que era voluntário em uma fundação. E pela história que me contavam achei que para eles era muito melhor morar nas ruas do que nos antigos lares. Coisa triste mesmo.

bjs, Sofista

sofista said...

Oi Anônimo!

Ixi. Não conheço essa história de Voltaire, não. Mas vou dar uma espiada.

Lamento pelo conhaque perdido. :-))

Neste episódio, foi perturbador perceber, ao final, que eu queria resolver o meu problema, não o dele. Eu quero dizer: se o menino fosse dormir em outro lugar, eu provavelmente não ficaria tão incomodada. Acharia péssimo que alguém tivesse de viver assim, claro, mas daria o assunto por encerrado e me esqueceria dele. Mas ali, do lado... Acho que, inconscientemente, eu só queria mesmo vê-lo sair dali. Perceber isso não foi nada divertido. Levei um choque. Mas aprendi alguma coisa. :-))

Bjs