Wednesday, January 10, 2007

Atmosfera 1

E Deus pôs Abraão à prova e disse-lhe: toma o teu filho, o teu único filho, aquele que amas, Isaac; vai com ele ao país de Morija e, ali, oferece-o em holocausto sobre uma das montanhas que te indicarei.

Era de manhãzinha. Abraão levantou-se, albardou os burros, deixou a sua casa com Isaac, enquanto da janela Sara os via descer pelo vale até se perderem de vista. Caminharam em silêncio durante três dias. Na manhã do quarto dia, Abraão continuou sem dizer palavra, mas, erguendo o olhar, viu ao longe os montes de Morija. Despediu então os servidores e, tomando Isaac pela mão, trepou pela montanha. E Abraão dizia para si: Não posso mais ocultar-lhe aonde conduz este andar. Deteve-se, pousou a mão sobre a cabeça do filho para o abençoar e Isaac inclinou-se para receber a bênção. O rosto de Abraão era o de um bom pai: o olhar doce e a voz exortavam. Mas Isaac não podia compreendê-lo; a sua alma não lograva elevar-se tão alto; abraçou os joelhos de Abraão, jogou-se-lhe aos pés, pediu-lhe piedade, implorou pela sua juventude e pelas mais doces esperanças, falou das alegrias da casa paterna, evocou a tristeza e a solidão. Então Abraão levantou-o, pegou-lhe na mão e caminhou e a sua voz exortava e consolava. Mas Isaac não podia compreendê-lo. Abraão subiu a montanha de Morija; Isaac não o compreendia. Foi então que, tendo-se afastado um pouco do filho, Isaac lhe tornou a ver o rosto, desta vez alterado, o olhar feroz, as feições aterradoras. Agarrou Isaac pelo peito, deitou-o por terra e disse-lhe: Estúpido! Supões que sou teu pai? Sou um idólatra! Crês que obedeço às ordens de Deus? Faço o que me apetece! Então Isaac fremente e com grande angústia, gritou: Deus do Céu? Tem piedade de mim! Deus de Abraão, tem piedade de mim, sê meu pai, porque já não tenho outro na Terra!

Mas Abraão ciciava: Deus do Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti.

Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seu atrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. Assim ele acredita que a mãe mudou, embora o coração dela continue firme e o olhar conserve a mesma ternura e amor. Feliz aquele que não tenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho!

Johannes de Silentio, vulgo Kierkegaard. Temor e Tremor.

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