Tuesday, August 03, 2010

Santo Patrono da Filosofia

Comecei a ler o livro "Ética", de William K. Frankena, e desisti logo nas primeiras páginas. Não posso levar a sério um livro que se refere a Sócrates como o "santo patrono da filosofia moral" (p. 13).

Sócrates é mesmo um santo. Viveu pela filosofia. Morreu pela filosofia. E defendeu a morte da vida pela vida da morte, como Cristo. Como Cristo, foi mártir.

Lindo, mas e a filosofia?

E a reflexão crítica? Parou aí, no conveniente?

Que os santos Sócrates, Platão e Hegel me perdoem, mas não tenho mais paciência para essa confusão entre filosofia e religião, seja explícita ou velada.

Sunday, August 01, 2010

A hora e a vez do History

Pelo visto, pérolas não são privilégio do Discovery Channel. Nesse quesito o History Channel também vai muito bem obrigado.

Na "Semana do Desconhecido" entrevistou-se ninguém menos que Erich von Daniken, o renomado charlatão que escreveu "Eram os deuses astronautas?". Para falar de alienígenas, claro.

Ele fez jus à fama: "Está escrito no DNA humano que extraterrestres passaram por aqui".

Ah, tá.

Pelo andar da carruagem, acho que nem o download salva.

Tuesday, July 27, 2010

Viciados em escândalos

Ainda sobre o documentário "Escândalos da Antiguidade".

Entendi quase tudo.

Entendi que a cidade de Tebas na época de Hatshepsut e Ramsés III tinha prefeito.

Entendi que havia vizir, inflação alta e desemprego no Egito Antigo.

Entendi isso tudo.

Só não entendi uma coisa.

Para provar que a rainha Hatshepsut promovia orgias reais, uma egiptóloga ou coisa que o valha mostrou uma inscrição em hieróglifo que, segundo afirmou, dizia "Navegar pelos pântanos". E conclui, brilhantemente: "Isto é claramente uma metáfora para o sexo".

Como assim, cara pálida?

Juro que não entendi, mas peço encarecidamente que ninguém me explique.

Sunday, July 18, 2010

Falta de inteligência

Definitivamente, a Discovery está se superando. Assisti recentemente ao documentário "Escândalos da Antiguidade" e fiquei sabendo, entre outras pérolas, que as múmias egípcias de 1.400 a.C. usavam cocaína.

É verdade que não exatamente as múmias, mas faz mesmo diferença?

E então, a melhor parte: como a cocaína só existia na América do Sul, é claro que os egípcios vinham buscá-la no Peru. Repito, 1.400 a 1.800 anos antes de Cristo.

Parece brincadeira, mas não é.

Claro, trata-se de teoria para justificar o fato de que uma pesquisadora alemã decidiu procurar cocaína nas múmias e aparentemente encontrou.

Bem. As múmias usavam cocaína antes de virar múmias. Conclusão lógica: havia uma rede internacional de fornecimento da droga, que incluía viagens ao Peru.

É uma completa falta de inteligência.

Por que não enviavam por sedex?

Muito mais rápido e barato.

Saturday, June 19, 2010

Tom professoral

Diz Robin Waterfield, em "The first philosophers", que não há educação sem pedagogia, e toda pedagogia é retórica.

Trocando em miúdos, não há educação, nem pedagogia. Só retórica.

Será?

Refletindo melhor, se pedagogia é retórica, há educação, porque aprende-se com a retórica alheia, mesmo que seja retórica.

Afinal, o que mais há para se aprender, quando a pedagogia é retórica?

Má retórica = má pedagogia.
Boa retórica = boa pedagogia.

Tudo isso me soa como uma visão demasiadamente simplista do problema em pauta. A questão pede uma abordagem aprofundada de seus desdobramentos possíveis, que não podem ser ignorados, sob pena de incorrermos na visão simplista e simplificadora enunciada acima. Há que se considerar o fato de que a retórica é frequentemente condição de possibilidade do engano, e não do aprendizado eficaz, que tem em vista o verdadeiro conhecimento. Este, sim, deve ser o objetivo precípuo de toda pedagogia que se quer pedagogia, e não retórica.

O que será tudo isso, senão exercício retórico?

Alguém se importa?

Friday, June 18, 2010

Auto-engano

Exercício físico não é minha praia. Na verdade, detesto. Sinto-me um robozinho repetindo séries de exercícios programados e cumprindo obedientemente com o meu dever cívico de ratificar a máxima de que envelhecer não é natural. A continuar assim, quando tiver setenta anos vou acreditar piamente que essa é a melhor idade.

Hoje, surpreendentemente, tive energia suficiente para exceder nas séries e estender o tempo de exercício em meia hora. Meia hora.

Fiquei feliz. Enfim, estou vencendo essa barreira.

Então estraguei tudo ao entender por que me senti tão disposta hoje a fazer o que detesto: deveria estar escrevendo a tese.

Na circunstância atual, qualquer coisa (qualquer outra coisa, bem entendido) tem grande potencial para me deixar feliz.

Até malhar.

Thursday, June 17, 2010

Teste vocacional

Testes vocacionais são uma farsa.

Quando cursava o segundo grau, eu sabia exatamente o que me interessava no mundo e o que queria ser. Diferentemente dos meus colegas, ou da esmagadora maioria, eu sabia que curso superior queria fazer.

No último ano do segundo grau, uma psicóloga visitou a escola e fez um teste vocacional com todos nós. O resultado, para mim, confirmou o que eu já sabia: marcante interesse por artes, literatura e ciências humanas em geral.

Errado.

Acho as meias palavras e a falta de clareza irritantes. Nunca tive a menor afinidade com poesia, ou com uma visão poética de mundo, e sabia disso. Mas o teste me pareceu exato, na ocasião. É isso mesmo, o mundo está em ordem e posso seguir placidamente o doce caminho em direção à minha grande e inegável vocação: o curso de Letras.

Erro.

Pelo menos a literatura me levou à filosofia.

No curso de filosofia, encontrei a lógica, e descobri que estava no curso errado.

De novo.

A filosofia é apaixonante quando lida com problemas teóricos de forma clara e despretensiosa, mas pode ser também um festival de lugares-comuns, obscuridades literárias, romantismos tolos e metáforas. Com frequência, não passa de uma religião disfarçada. Religião do discurso articulado, da visão de mundo percebida como correta, religião da verdade eu-fulano-de-tal-brilhante-por-entender-o-filósofo-tal-brilhante-e-dificílimo. Religião do auto-apaixonamento.

Talvez, se não tivesse começado com tantas certezas sobre minha vocação, não teria tantas dúvidas agora.

Talvez as dúvidas sejam apenas parte de um processo que não posso e não quero deter e que não me levará a lugar algum.

Só me deixará eternamente insatisfeita, o que me parece bastante satisfatório.

Tuesday, June 15, 2010

Teimosia

Noël Carroll, em A filosofia do horror, agradece aos pais por ter insistido que não perdesse tempo assistindo a filmes de terror. Parte de seu interesse pelo gênero, o autor parece sugerir, veio do fato de ignorar esse conselho.

Quando criança, assistia a filmes de terror de madrugada, para que meus pais não soubessem. O gênero era proibido, o que o tornava mais interessante. Mas, diferentemente de Carroll, confesso que não aproveitei nada da experiência. Acho mesmo que foi pura perda de tempo.

Os filmes perderam a capacidade de assustar. Ficaram ridículos. Há algo de infantil em querer assustar, e em deixar-se assombrar pelo imaginário. Por este imaginário, ao menos.

Ainda assim, insisto em assistir a filmes de terror. Ao final, sempre me pergunto que parte obscura de mim quer sentir medo, e por que me sinto tão frustrada em não me assustar mais com filmes.

Bem.

Seja como for, ainda gosto do gênero. Não dos filmes exatamente, mas do gênero.

Afinal, para quem comete o sacrilégio de preferir Green Jelly a Chico Buarque, filme de terror está de bom tamanho.

Monday, June 14, 2010

Mutatis mutandis

Passei por uma experiência libertadora hoje.

Trabalhei, há vários anos atrás, no serviço público federal. Saí porque tinha ambições intelectuais que o trabalho não poderia satisfazer, e que não poderia realizar plenamente se continuasse ligada a uma atividade de oito horas diárias e que me oferecia apenas tarefas burocráticas. Apesar disso, eu gostava muito do que fazia, assim como dos colegas e do local de trabalho.

Até hoje, sempre considerei esta decisão um grande erro. Por melhor que seja minha atividade atual, não me garante estabilidade. Passaram-se quase duas décadas em que lamentei a decisão, e há pouco havia decidido fazer o caminho de volta e me preparar novamente para concursos. Talvez a inconstância seja parte de minha natureza.

Bem, hoje fiz uma espécie de passeio pelo antigo local de trabalho. A primeira impressão forte que tive é que o espaço físico era menor do que me lembrava. Encontrei algumas pessoas com quem trabalhei, observei a rotina do trabalho e percebi que morreria de tristeza se ainda estivesse lá.

Tudo continua como dantes no país de abrantes. Mesmas pessoas, mesmas funções. Até os elevadores são os mesmos do tempo em que trabalhei ali. Mesma reivindicação da associação dos trabalhadores. Mesma motivação marxista-leninista de quase vinte anos atrás.

Não acho que algo deveria ter mudado. O problema é que eu mudei.

Somente hoje, depois de tanto tempo, entendi que a minha decisão foi acertada, apesar das insatisfações que possa ter com meu trabalho atual.

Felizmente abandonei um trabalho imutável, em todos os sentidos.

Por mais que a mudança seja desestabilizadora, atrever-me a me mover foi a melhor coisa que fiz na vida.

Sunday, June 13, 2010

Singer

O que mais aprecio em Peter Singer, o filósofo australiano, é sua defesa dos direitos dos animais.

Um dos argumentos mais comuns em defesa do uso de animais para alimentação humana é que eles não têm inteligência.

Singer contra-ataca: se a suposta ausência de inteligência serve de argumento, então é mais coerente deixar vivo um cavalo adulto e engordar um bebê humano de dois meses. Afinal, o cavalo adulto é muito mais inteligente que o recém-nascido humano.

Mas, bem entendido: não se trata de matar a criança. Trata-se de mostrar como o argumento é fraco.

No fim das contas, matar um ser vivo para nos alimentar dele não é moralmente correto. A única razão para agirmos assim é estética, o que é uma razão torpe, no contexto.

Saturday, June 12, 2010

Chave de cadeia

E por falar em democracia, alguém pode me explicar o que aconteceu com Oliver Stone?

Foi abduzido por um ET?

Comeu alguma coisa estragada?

Sofreu um acidente quando criança e perdeu massa encefálica?

Oliver Stone, o cineasta de The Doors, Platoon, Alexandre, Evita e outras porcarias do gênero, resolveu agora fazer um filme sobre Hugo Chávez. Para Stone, Chávez é um visionário, que devolveu a América Latina à esquerda, libertando-a do FMI. Um herói.

Herói? Chávez?

Visionário?

Libertador?

Em que século esse cidadão está vivendo?

E eu ainda escrevia, há algum tempo atrás, que perdemos a inocência.

É lindo ver um adulto assim tão cândido, tão jovial. Deve dormir abraçado a um ursinho de pelúcia.

Afinal, pagando bem, que mal tem?

Friday, June 11, 2010

Simpliciter

Participei recentemente de um juri de filosofia. O debate era sobre democracia. Os debatedores deveriam defender, de um lado, que há democracia no Brasil e, de outro, que não há.

Embora o papel da banca fosse apenas votar, foi solicitado que nos manifestássemos sobre o tema, ao final. Éramos cinco e, com exceção de uma colega, que afirmou existir democracia no Brasil em termos teóricos, mas não em termos práticos, os demais se manifestaram contra a idéia de que há democracia no Brasil.

Basicamente, o que define a democracia, hoje?

a) participação do povo no governo, de forma direta ou indireta;
b) respeito às liberdades individuais.

Se esta definição é correta, então há democracia no Brasil, o que me parece bastante óbvio. Nós votamos e qualquer um, a rigor, pode se filiar a um partido e participar ativamente da política. Há liberdades individuais: liberdade de expressão, de ir e vir, religiosa, econômica etc. etc.

Então, que bobagem é essa de achar que não vivemos numa democracia?

Thursday, June 10, 2010

Gente

Lembro de um episódio do seriado "Caça-fantasma" em que um homem magérrimo faz um pacto com o diabo para acabar com todos os frangos do planeta. Ele odiava frango porque acordava todos os dias morto de fome e sentindo o cheiro de frango assado que vinha da casa vizinha.

Eu não odeio frango. Odeio, isto sim, acordar todos os domingos com os sons vindos da casa vizinha, de um frango sendo estrangulado para ser servido como prato principal do almoço.

É um absurdo que, em pleno século 21, haja pessoas que ainda matam animais para se alimentar. É um absurdo que sejam indiferentes à dor do animal.

Acordei, na semana passada, em meio a uma "aula" sobre como estrangular um frango. O aprendiz errava, e lá vinha o instrutor: você tem de segurar assim, virar a cabeça assim etc., etc. Enquanto isso, o bichinho gritava, desesperado.

Sofrimento animal, nem na ficção. Acordar todos os domingos com o som de um animal sendo morto é intolerável. Deprimente.

Os animais têm tanto direito quanto nós à vida. Matá-los devia ser crime.

Wednesday, June 09, 2010

Caiu a ficha

Demorou, mas caiu a ficha de que cair a ficha não significa mais nada.

É que cair a ficha tem a ver com telefone público. Remotamente, é verdade, mas tem. As novas gerações usam celular. Assim, nada sabem sobre cair a ficha. Portanto, "cair a ficha" é uma expressão que está caindo em desuso.

Tuesday, June 08, 2010

Filosofia do canto

Como escrevi, ando inspirada pela filosofia francesa. Por dever de ofício.

Bem. Não foi isso exatamente que eu escrevi, mas vá lá. Sinto-me inspirada agora e não posso deixar passar a oportunidade. Afinal, inspiração é tudo.

Hoje encanta-me o canto. O canto quina, o canto esquina, o canto das cantoneiras e das vassouras.

O canto é escuro, mal iluminado. Portanto, recanto do ser e, no ser, daquele lugarzinho obscuro onde se abriga o id, o não-ser do ser. Lugar da intimidade e do recolhimento. Sobretudo, do recolhimento de quem se intimida. Logo, lugar do não-lugar, do não-ser, do oculto, do não-revelado, do não-dito, do não, da nadidade do ser, vazio de ornamentos e destituído de relevância. Espaço da interioridade mais recôndita da casa, esquecido pela decoração, mas fundamental na constituição do eu-casa, um eu-casa que se faz no não-eu, o eu-outro que é um eu-canto.

Há que se falar também da miniatura, canto-casa-miniatura do eu-casa. A miniatura-canto é para a casa o que a casa é para o eu: a subjetividade recolhida no espaço-miniatura. Espaço geométrico, cônico, de tangentes e diagonais convergentes para o centro mas, ao mesmo tempo, divergentes em relação ao cone. Um pseudo-lugar de uma pseudo-subjetividade que se reencontra e se redescobre como sujeito do canto.

Ixi. E não é que tenho talento para a filosofia?

Mostrei também que conheço geometria.

Monday, June 07, 2010

Detector de capeta

A IURD (leia-se: Igreja Universal do Reino de Deus) criou uma nova parafernália para encantar seus fiéis e dar-lhes mais segurança nesta vida: o detector de capeta.

Considerando a verdade "há capeta", é lógico supor que "há capetas". Eu quero dizer, não um, mas uma legião; não de um só tipo, mas vários. Logo, há capetas, demônios, belzebu, asmodeu, mefistófeles etc (minha parca cultura sobre o assunto acaba aqui). De qualquer modo, o ponto é: se há capetas, há outros seres do mal. Sendo assim, a eficácia de um detector de capeta é bastante limitada, porque só detecta capeta.

A não ser, é claro, que na metafísica do mal esteja acertado que somente capetas atacam pessoas ou ambientes. Neste caso, quem precisaria de um detector de zumbis?

E lá vamos nós para o reino da técnica/tecnologia e da religião materialista. O ser é matéria, para os apóstolos na IURD. Matéria-dinheiro, representação material, bem entendido. O mesmo se dá com o capeta, Deus e o diabo-a-quatro: representações/matéria. Se tudo é matéria, a matéria tem o poder de quebrar os efeitos da matéria. Assim como pode-se supostamente detectar fantasmas com uma parafernália elotrônica, pode-se usar a máquina para detectar capetas. Eis o mundo material/imaterial controlado pelo material. Pela máquina. Mas para que isso aconteça, é preciso a técnica, o saber-fazer. E isto, só a IURD sabe. Ou seus fidelíssimos crentes na matéria, na máquina e no dinheiro que permite tudo isso.

Pena que a IURD não esteja sozinha nessa paixão desenfreada pela matéria.

Sunday, June 06, 2010

A lógica da lógica

Entendo que a filosofia se define por um método, a dedução, e por um objeto, a verdade lógica (em oposição à verdade "empírica" ou "psicológica" ou "religiosa" etc). Isto significa que qualquer conteúdo pode ser do interesse da filosofia, ou tratado filosoficamente. Significa também que não há filosofia, em meu entendimento, onde não há o interesse pela verdade lógica. Por verdade lógica eu me refiro à que é derivada unicamente da coerência argumentativa, isto é, a verdade que é resultado da validade do argumento. Portanto, demonstrável, por um lado, e passível de crítica, por outro.

Também não me refiro, claro, à verdade em sentido absoluto, mas apenas àquilo que se toma como verdadeiro a partir das condições apresentadas acima.

O máximo de concessão que se pode fazer é admitir que uma doutrina baseada em pressupostos indemonstráveis pode ser filosofia em sentido lato, como "filosofia de vida" ou qualquer coisa assim. Não vejo diferença estrutural entre a filosofia francesa, de um modo geral, e o budismo, por exemplo.

Não percebo uma filosofia como a que descrevi como dogmática. Ao contrário, dogmática, penso, é a filosofia que se apóia em afirmações soltas, em visões de mundo, em subjetividades e constrói sistemas genéricos que a tudo explicam. P.ex.: qualquer filosofia que parta de afirmações como "tudo é imagem".

A definição que apresentei exclui também qualquer tentativa de tornar a filosofia empírica ou indutiva.

Ainda: filosofar não é criar conceitos (entendidos como aparatos metafísicos). A criatividade pode ser parte do processo, mas nunca o seu ponto de partida.

A metáfora pode ser bela, mas não pode ser falsificada, ou seja, não é passível de crítica. Não garante a "verdade lógica" de que falei acima, porque não é nem verdadeira, nem falsa. Logo, não deve ser parte de uma abordagem do mundo que pretenda realmente entendê-lo.

Saturday, June 05, 2010

Definir ou não definir, eis a questão

Existe uma certa resistência, dentro dos departamentos de filosofia, de definir seu objeto. De um modo geral, agrada aos filósofos a idéia de que a filosofia seja ampla demais, abrangente demais, complexa demais para caber em um conceito.

A resistência à definição tem a vantagem de fazer qualquer coisa caber dentro do conceito: a poesia, a literatura, a psicanálise, o delírio, o devaneio, a crença, o que carece de lógica, a bricolagem e os rococós. Assim, permite que haja filosofias do ar rarefeito, de associações vagas e indemonstráveis e construção de grandes sistemas, que pretendem explicar o todo da realidade. Para piorar, são filosofias que encantam exatamente por seus defeitos, recebidos passivamente como qualidades supremas.

A lógica pode ser árida, às vezes, mas recusar o rigor lógico como "aprisionamento do sujeito" ou "interdição do discurso" não passa de fuga do trabalho árduo que a boa filosofia exige, escondendo-se sob o discurso romântico e encantado da metáfora tornada filosofia.

Há ainda dois problemas sérios derivados da recusa em definir a filosofia: a impossibilidade de se encontrar um lugar próprio para o pensamento filosófico, que não se distingue do que já assinalei acima, e a disseminação de uma postura intelecual pouco séria. No primeiro caso, se sentimos um certo receio "filosófico" em dizer o que é filosofia e o que não é, aquilo de que falamos perde o referencial, o que promove o segundo problema, o escamoteamento de posturas pouco sérias. É claro que há exceções, mas via de regra a filosofia que se ensina em sala de aula é muito mais um reflexo das convicções do professor, tratadas com respeito religioso e repetidas como doutrinas incontestáveis, que propriamente ensino de filosofia.

Chega-se, inclusive, ao absurdo de interpretar o pensamento de um filósofo de modo a fazê-lo caber em uma visão de mundo. Isto, aliado à afirmação, repetida ad nauseam, de que a lógica não passa de mera razão instrumental, faz com que o pensamento crítico e criterioso passe ao largo das salas de aula.

Paixão francesa

Assisti a tantos filmes de Godard recentemente, que não tenho paciência para ver mais nada. Rigorosamente nada. Não que os filmes sejam ruins. Muito pelo contrário, são bastante bons. Exigentes, caprichosos, mas de qualquer forma bastante bons.

Ao mesmo tempo, li Deleuze como uma condenada. Agora que me libertei dele, não tenho a menor intenção de retomá-lo. Não é que seja ruim. De modo algum. Apenas é tão exigente, caprichoso e cansativo quanto Godard.

Também tive de retomar Bachelard no que considero o seu pior, o noturno, mistureba de poesia, filosofia e psicanálise.

Vi também algo de Robert Bresson e Resnais.

Overdose de cultura francesa.

Apesar da jornada árida, o esforço valeu a pena. Aprendi um pouco mais, e tenho esperança de que o aprendizado me seja útil algum dia. Pelo menos vou poder sustentar uma conversa de alguns minutos sobre o cinema francês.

A verdade que extraí de toda essa "experiência francesa", com a clareza de um sótão e a obscuridade de um porão bachelardianos, dialeticamente falando e pensando, é que o francês é, definitivamente, um apaixonado. Devoção religiosa, é a palavra. Basta assistir a um video no youtube de Deleuze, Godard ou Lacan, para vermos um padre ou pastor falando. Paixão ensandecida pela palavra, pelos signos, pela imagem, pela dialética, pela sedução, pelo desejo, pela retórica, pela beleza, pela própria paixão e por si mesmos.

E nenhum, absolutamente nenhum interesse pela lógica.

Boa literatura, talvez, mas onde está a filosofia?