Tuesday, January 09, 2007

A caixa chinesa de Kierkegaard

Um certo indivíduo, que se intitulou Johannes o Sedutor, escreveu um diário contando como seduzira uma jovem ingênua, e o abandonou em uma gaveta. Um outro indivíduo, ou talvez o mesmo, escreveu outros seis livros menores, juntou todos eles, inclusive o Diário do Sedutor, e esqueceu todos os textos em uma gaveta. Um juiz, Guilherme, vasculhando as gavetas, encontrou o material e o leu. Incomodado com o que havia lido, e julgando que todos os escritos pertenciam ao tal Johannes o Sedutor, decidiu que tinha lhe dar uma resposta à altura. Como a premissa fundamental do Sedutor baseava-se na idéia de que a vida ética é entediante e que deve-se buscar a variedade para fugir da monotonia, o Juiz Guilherme lançou-se à tarefa de tentar mostrar ao Sedutor que a vida estética não é outra coisa senão desespero, e que o casamento não é necessariamente tédio. Escreveu três livros, entre eles O Matrimônio, mas, como não tinha meios de enviá-los ao esteta, deixou-os, juntamente com um sermão de um certo sacerdote, na mesma gaveta, para que o Sedutor o encontrasse, quando voltasse para buscar seus papéis.

Isto não aconteceu; o autor anônimo nunca retornou, e os volumes, agora onze ao todo, ficaram esquecidos na gaveta. Então, em um belo dia um encadernador, Bogbinder, encontrou os manuscritos e os reuniu em um único volume. Um editor, Victor Eremita, encontrou os volumes já encadernados, com uma nota explicativa do Sr. Bogbinder. Victor Eremita estudou as caligrafias e concluiu que só havia dois autores: os primeiros sete manuscritos haviam sido escritos pelo tal Johannes o Sedutor - que chamou de A - e os quatro últimos, pelo Juiz Guilherme - que chamou de B. Então, editou a obra, explicando como fora parar em sua mão, mas deixando claro, ao final, que, se os manuscritos podiam ser uma farsa, a sua edição também poderia ser. Portanto, os leitores não podiam ter certeza nem da autoria, nem da história que ele contava, nem do que ele próprio afirmava sobre a edição dos manuscritos, ou mesmo de que fosse realmente o editor, apesar de assinar.

Este é o enredo da obra "Ou ou", de Kierkegaard (ou melhor, de um tal Victor Eremita) e marca sua estréia como filósofo. A obra é extensa e magistral, sobretudo os escritos estéticos. Há um longo ensaio sobre o Don Giovanni, de Mozart; um ensaio sobre o tédio a partir da existência, não sei se real, de uma sepultura em Londres dedicada a um "anônimo"; o Diário do Sedutor, e outras mais.

A obra tomou Copenhague de assalto; especulou-se à exaustão sobre a autoria. Kierkegaard estava na lista dos suspeitos e, para negar que fosse o autor, escreveu um artigo para jornal intitulado "Quem teria escrito Ou, Ou?", em que levantava hipóteses sobre os literatos de Copenhague: "Teria sido fulano?" "Não, fulano não poderia ser por esta e esta razão" etc.

Deve ter-se divertido bastante com a panacéia. A oportunidade era perfeita para ironizar a "elite intelectual" de sua cidade, e ele não deixou por menos.

2 comments:

said...

Ola! Sou estudioso de Kierkegaard e gostaria de saber se vc tem algum texto sobre Don Giovanni. Estou pesquisando sobre o conceito de repetição e eternidade, na obra.

Veja meu blog pra saber quem sou.

Grato, Zé Paulo

sofista said...

Olá, José Paulo

Eu tenho uma edição inglesa de "ou ou" completa, em que há o texto que te interessa. Só que é papel, não tenho este texto no computador. O conceito de repetição você encontra também na obra de Constantin Constantius (ou qualquer coisa assim), "Repetição", que está na internet, mas como este é seu tema, imagino que já tenha. De todo modo, esta eu posso mandar. A versão que tenho em pdf é em espanhol.

Vou visitar seu site e deixar um recado lá também.

Abraço