Sunday, May 31, 2009

Fonte da juventude (1)

A condessa Elizabeth Bathory, que viveu no século XVII na Hungria, ou na Transilvânia, acreditava que manteria a juventude eterna se tomasse banhos frequentes com o sangue de mulheres jovens e virgens. Fácil, né? Bastava matar uma jovem a cada vez que resolvesse tomar banho.

Como os europeus não são muito conhecidos por tomar banho todo dia, e nessa época devia ser no máximo um banho por mês, ela não precisava de muitas virgens. Mesmo assim, seu diário registrava em torno de 650 mortes.

Vampirismo clínico? Que nada. Sadismo mesmo.

Julgada e condenada, Bathory morreu na prisão. E, claro, virou vampira. E nome de banda de Black Metal.

Saturday, May 30, 2009

Liberalismo x Marxismo

Escrevi, na tese, que os sofistas ampliaram o conceito de cidadania ao permitir que todos que quisessem estudar pudessem fazê-lo. Até então só os nobres tinham direito à educação.

Meu orientador argumentou que isso é uma falácia liberal: embora todos pudessem, em tese, estudar com os sofistas, apenas aqueles que pagavam podiam de fato fazê-lo. Então a situação não mudou, porque só os nobres tinham dinheiro suficiente para pagar.

Não entendo assim. Acho que há uma diferença relevante entre o que uma cultura não permite devido a valores assumidos e o que ela não permite devido à desigualdade econômica. No primeiro caso, a dificuldade não pode ser transposta. No segundo, pode, ao menos em tese.

Independentemente do empírico, da prática, alguma coisa fundamental aconteceu: antes dos sofistas ninguém tinha acesso à educação exceto os nobres, e isso não tinha nada a ver com poder pagar, mas com uma estrutura social inflexível. Quando os sofistas começaram a vender seus ensinamentos, essa ordem social sofreu uma alteração substancial: só os nobres estudavam (por razões diversas, inclusive financeiras), mas todos podiam estudar, se quisessem e tivessem dinheiro para pagar. É verdade que não tinham, mas isso não muda o fato de que podiam estudar.

Logo, os sofistas ampliaram, sim, a educação, tornando-a possível para todos.

Friday, May 29, 2009

C'mon...

Lembra do caso dos piratas da Somália, cerca de um mês atrás? Pois é, vai virar filme, produzido por Kevin Spacey.

Não é cedo demais? Está faltando assunto?

O que há para contar em uma história tão recente, de que sabemos o começo, o meio e o fim?

De qualquer modo, deve dar bilheteria. Americano adora histórias de patriotismo heróico. É o que os faz superiores, né não?

Thursday, May 28, 2009

Quanto cobravam os sofistas?

A diferença entre um sofista e um filósofo é enorme.

Ah, a Grécia capitalista!

Ah, o mundo capitalista!

Bem. Quanto ganhavam os sofistas?

Protágoras cobrava 100 minas por um curso, correspondente a 10.000 dracmas, a unidade da moeda grega de então. Um único curso era suficiente para comprar diversas casas como a de Sócrates.

Pródico cobrava 50 dracmas por um curso completo de gramática e uma por um resumo. Modesto. E deprimido, segundo Platão.

Um operário qualificado ganhava uma dracma por um trabalho completo.

Hípias diz, no diálogo de Platão que leva seu nome, que ganhou com um único curso 150 minas. Entregou o dinheiro ao pai, que vivia na ilha de Élis. Será que o pai se perguntou o que o menino estava fazendo para ganhar tanto dinheiro?

Não. Hípias era bem conhecido, assim como sua atividade. O pai deve, isto sim, ter agradecido aos deuses por ter um filho tão bom. Bom para fazer dinheiro, claro.

E por ter preferido ser sofista a filósofo.

A posteridade que o julgue, mas que viveu bem, lá isso viveu.

Wednesday, May 27, 2009

O patrimônio de Sócrates

Fiquei me perguntando: além de uma manta velha, rasgada e suja e sandálias furadas, qual teria sido o patrimônio de Sócrates?

500 dracmas (ou 5 minas). Este era, segundo Xenofonte, o valor total do patrimônio de Sócrates. Não é de admirar que Xantipa fosse uma mulher estressada.

Vejamos: um sapato custava, em média, 8 dracmas;

Um vinho de qualidade podia ser adquirido por 2 dracmas;

O valor médio de uma casa era de 500 dracmas;

Uma fazenda, com a casa, custava em torno de 5.000 dracmas;

O aluguel de uma casa simples, 36 dracmas por ano.

Isto significa que Xantipa não podia comprar muitos sapatos para os filhos. O vinho que os gregos bebiam como água, só de péssima qualidade. Uma fazenda, nem pensar.

Mas, afinal, quem precisa de sapatos, vinho e fazenda quando tem a filosofia?

E depois, Sócrates tinha uma casa que valia 5 minas.

Tá bom demais.

Sunday, May 24, 2009

Escárnio dos filósofos pagãos

Alguns trechos de Escárnio dos Filósofos Pagãos, de Hérmias, o filósofo (séc I de nossa era):

Anaxágoras me toma consigo e me dá a seguinte lição: “O princípio do universo é o nous ou inteligência. Ele é o autor e senhor de todas as coisas, que põem ordem no que é desordenado, movimento no que está imóvel, distinção no confuso e beleza no que não é belo”. Gosto de ouvir Anaxágoras dizer isso e adiro ao seu ensinamento. Mas contra ele se levantam Melisso e Parmênides. Parmênides anuncia poeticamente que a essência é coisa única, eterna, imóvel e em tudo semelhante. Sem saber como, eu me transfiro para esse dogma. Parmênides expulsou Anaxágoras da minha mente. Mas, quando penso estar em posse de um dogma estável, Anaxímenes se intromete, gritando: “Eu, porém, te digo: o universo é ar, e este, condensando-se e solidificando-se, transforma-se em água e terra e, rarefazendo-se e espalhando-se em éter e fogo e, voltando de novo à sua natureza, em ar...” Também me acomodo com isso e torno-me amigo de Anaxímenes.
Mas aí está frente a frente Empédocles, resmungando e gritando em alta voz a partir do Etna: “Os princípios do universo são o ódio e a amizade, esta unindo e aquele separando, e a luta entre os dois realiza tudo. Eu os defino como semelhantes e dessemelhantes ilimitados e com limites, como eternos e que têm começo”.
- Bravo, Empédocles! Estou disposto a seguir-te até a cratera do vulcão.
Mas aí está agora Protágoras, puxando-me para outro lado, quando diz: “O limite e o critério das coisas é o homem; o que lhe cai sob os sentidos são coisas, e o que não cai não se encontra entre as espécies da essência.” Lisonjeado com esse raciocínio, fico gostando de Protágoras, pois ele atribui tudo o mais ao homem. Tales, porém, me desvia para outro lado com a verdade, definindo a água como princípio do universo: “Do úmido tudo se compõe e nele tudo se dissolve, e a terra se sustenta sobre a água”. E por que não acreditar em Tales, o mais velho dos jônios? Todavia, o seu concidadão Anaximandro afirma que o movimento eterno é um princípio mais antigo que o úmido, e que por ele algumas coisas nascem e outras perecem. Deve-se, portanto, acreditar em Anaximandro.
Mas também não é famoso Arquelau, que afirma que os princípios do universo são o calor e o frio? Todavia o grandiloquente Platão não está de acordo com ele, pois afirma que os princípios do universo são Deus, a matéria e o modelo. Agora sim eu fiquei convencido. Com efeito, como não hei de acreditar no filósofo que inventou o carro de Zeus? Atrás dele, porém, vem o seu discípulo Aristóteles, invejoso do seu mestre pela construção do carro, e define outros princípios: a ação e a passividade. O princípio ativo, que é o éter, é impassível; o passivo tem quatro qualidades: secura, umidade, calor e frio. Com efeito, tudo nasce e morre pela transformação desses princípios. Já estou cansado de ir para cima e para baixo com opiniões diferentes; vou ficar com o que Aristóteles pensa, e que ninguém venha me incomodar com os seus discursos.


Mas não fica com Aristóteles, não.

E la nave va.

Friday, May 22, 2009

Hérmias, o filósofo

E por falar em religião filosófica, ou filosofia religiosa, ou muito pelo contrário, lembrei de Hérmias, o filósofo, que escreveu Escárnio dos filósofos pagãos no começo de nossa era.

Nada sei sobre o autor, mas não importa. O que interessa saber está no texto: Hérmias faz uma passagem bem humorada pela filosofia grega, procurando a verdade. Cada filósofo com que se depara o convence da verdade, mas logo encontra outro e então concorda com uma posição contrária à anterior, e assim sucessivamente.

No fim das contas, está confuso, "sem saber em quem acreditar", e encontra Jesus. Pronto. Eis a verdade.

Considero este registro o melhor exemplo da diferença entre filosofia e religião: Hérmias procura a quem seguir. Como ele próprio diz, quer acreditar em alguém. Tenta acredita em todos os filósofos, mas percebe que isto é impossível, porque as doutrinas são rivais e mutuamente excludentes. Então fixa-se na doutrina cristã, que julga ser verdadeira por não ter oposição real. Em alguns momentos, chega a dizer que "acreditou no dogma" do filósofo tal, e que quase se atirou no Etna junto com Empédocles.

Hérmias não entendeu o que leu. Estava procurando a quem seguir, queria um dogma em que pudesse acreditar, e procurou no lugar errado. Passou pela filosofia, se é que passou, mas não entendeu nada. A contradição, a oposição de idéias, ele julga que são sinais de falsidade, de inverdade. O que ele entende como não-contraditório, a doutrina cristã, é verdadeiro exatamente por isso.

Não conheço outro texto tão expressivo, do ponto de vista da separação entre filosofia e pensamento mítico, como esse.

Hérmias queria uma verdade pela qual pudesse viver. Encontrou.

Vaya con dios.

Com a minha benção.

Tuesday, May 19, 2009

MacIntyre

Alasdair MacIntyre é, sem dúvida, um grande filósofo. Li Depois da Virtude, que achei excelente, e a parte sobre os gregos em Breve História da Ética, mas estou tendo alguma dificuldade com a leitura de Justiça de Quem? Qual racionalidade?

Ex-marxista, MacIntyre se deixou converter a Tomás de Aquino nos anos 80 e é hoje um católico fervoroso. Nada contra, mas quando a sua religiosidade se confunde com sua filosofia, a coisa fica complicada. Pela via de Tomás de Aquino ele retornou a Aristóteles e defende uma tese pra lá de utópica: quer o retorno à polis, às pequenas comunidades, porque somente nelas o telos do homem, associado à ética das virtudes, é possível. Certo. Entendo a proposta, mas não entendo o sentido de defender o retorno ao passado, sobretudo no que diz respeito ao Estado, quando o mundo caminha para a superpopulação e, em consequência, para megacidades.

MacIntyre é um pensador estranho. Moderno, com propostas de retorno ao passado. Tem matizes analíticos, mas recusa o projeto iluminista. Sua filosofia é em parte religião. E, diferentemente de tudo que já li em filosofia, discute seriamente a obra de Jane Austen, uma escritora considerada menor. É claro que não o faz como crítico de arte. Seu propósito é mostrar a moralidade subjacente à obra. Em todo caso, só o fato de ter lido Jane Austen e analisar cinco de suas obras (acho que Austen escreveu apenas seis) já é algo inusitado.

Fico no meio do caminho. É interessante, perspicaz, culto e inteligente, mas algo não vai bem. Por tudo que disse, considero MacIntyre um legítimo sucessor de Kierkegaard. O único, talvez. Mas ainda prefiro Kierkegaard.

Saturday, May 16, 2009

Deadwood

Para quem gosta do gênero western, a série Deadwood, da HBO (que também produziu Roma) é uma excelente opção. Ainda acho que Roma é melhor, mas Deadwood tem muitas qualidades. A principal e, creio, também seu defeito, é o realismo.

Enquanto o oeste selvagem é visto no cinema com romantismo, saudosismo e maniqueísmo, Deadwood tem cenários feios, sujos e, embora haja uma tendência ao maniqueísmo, a trama e os personagens acabam se revelando mais complexos do que inicialmente pareciam ser. A proposta de realismo é o grande mérito da série, mas há excessos, que revelam muito mais um olhar moderno e cínico do oeste que propriamente fidelidade histórica.

É claro que se trata de uma obra de ficção, mas a proposta, que se baseia em eventos, contexto e personagens históricos, pretende ser realista. A violência, a falta de higiene e os conflitos de poder em uma terra sem lei, em que não se morre de causas naturais, parecem historicamente adequados. Mesmo assim, ainda acho que há exagero na apresentação dos personagens, na violência (em quase todo episódio alguém morre assassinado) e na superexposição do sexo. Moderno demais, ou pagão demais.

Comparada a Roma, Deadwood é bem mais contida nos aspectos que mencionei. Mas Roma é pagã. Deadwood, uma cidade sem lei do final do século XIX, é cristã. Embora se situasse, literalmente, no limite da civilização, ainda é cristã. Por isso, o tom me parece um tanto exagerado. A figura de Calamity Jane, que de fato existiu, é bem caricata. Wild Bill é retratado como um homem de grande caráter e uma certa docilidade, apesar de matar para viver. Seu assassino, o "covarde Jack MacCall" é um sujeitinho medíocre e cretino, o Eróstrato do oeste. Seth Bullock é o bom moço - o clássico tipo um dos eneagramas - que quer consertar o mundo mas esconde uma ira assassina e se deixa corromper aqui e ali. E Al Swearengen, um tipo conhecido pela virulência e pelas atrocidades que cometeu, na série aparece mais humanizado, apesar de matar ou mandar matar em quase todos os episódios. Há um certo fatalismo no personagem, que em vários momentos afirma não gostar do que faz. É um tipo trágico, que segue seu destino "de homem", como diz, e de menino criado em bordel. Seu rival no negócio de bordéis, Cy Tolliver (um dos personagem fictícios, até onde posso saber) é mais refinado, mas bem mais linear na vilania.

A oposição entre o bom moço Seth Bullock (que organizou e moralizou a cidade histórica) e o vilão Al Swearengen (dono do bordel Gem Theater), ambos figuras históricas, em alguns momentos caminha em sentido contrário: Al tem suas razões para agir como age (a história de vida infeliz e a obsessão com o lucro) que quase justificam sua crueldade, enquanto o bom moço é dominado pela fúria, muito mais que pelo desejo de justiça.

De qualquer modo, a série é mesmo muito boa, especialmente na primeira temporada. A partir da segunda o tom exagerado fica ainda mais evidente, mas há coerência na história. É interessante também acompanhar o desenvolvimento da cidade, permeado por acontecimentos históricos como a epidemia de varíola, o assassinato de Wild Bill e os conchavos, assassinatos e subornos para conseguir a legalização (já que o vilarejo se encontrava em território indígena, e não fazia parte da União).

Para quem gosta do gênero, é imperdível.

Friday, May 15, 2009

Cuidado

Não, não são spoilers desta vez. Este post é para alertar sobre um novo golpe com telefones.

Se estão ligando insistentemente para seu celular, desconfie.

Se seu telefone fixo toca sem parar, mas fica mudo quando atende, desconfie.

Não sei como isso é feito, mas estas são tentativas de clonar seu número (no caso do celular) e de ativar o siga-me (no caso do fixo).

Fique atento, para não ter surpresas desagradáveis.

Wednesday, May 13, 2009

E por falar em Tim Roth...

Acabei de ver a primeira temporada de Lie to me, com Tim Roth. Não é uma série especial, mas tem seus atrativos. Na verdade, um só: Cal Lightman, personagem de Tim Roth, é um cientista especializado em identificar sinais inconscientes e involuntários de mentira. Ou melhor, ele é capaz de ler gestos e expressões e descobrir verdades que tentam encobrir.

Vale pela informação, embora haja, claro, um certo exagero.

O ponto fraco da série está nas histórias contadas. Via de regra não são interessantes, mas pelo menos há reviravoltas capazes de manter a atenção do espectador.

De qualquer forma, vale a pena ver um bom ator em cena, além de ser possível extrair algum conhecimento da série.

Tuesday, May 12, 2009

Ars gratia artis

Sabe o leão da Metro Goldwyn-Mayer? Aquele que ruge, no começo de cada filme?

Pois é. Acima do leão há uma frase em latim: ars gratia artis: arte pela arte.

A frase é de Edgar Allan Poe e ilustra seu entendimento de que a criação artística deve ser autônoma, espontânea e livre de moralidade, utilidade e inspiração.

Sim, inspiração. Allan Poe acreditava que, para escrever, o artista não deve se prender nem mesmo à inspiração. Deve apenas escrever. Como ele diz, o poema deve ser escrito pelo poema e para o poema, e isso é tudo.

Muito bem. Só não entendi o que a frase está fazendo na logo da Metro.

Arte pela arte?

Sei não.

Vai ver que é por isso que está em latim: nada a ver, mas a esmagadora maioria nem vai perceber.

Monday, May 11, 2009

Funny games

Assisti hoje ao filme "Funny Games" (em português, "Violência gratuita"). Confesso que inicialmente pensei se tratar de mais um desses filmes B em que há um torturador e um ou mais torturados, que no final viram o jogo e tudo acaba bem com a morte do bandido.

Se alguém pensa que acabei de contar o final do filme, se engana.

Isso eu vou fazer em seguida.

Portanto, se não quer saber, pare a leitura aqui.

Cuidado: spoilers!

Aviso feito, voltemos ao filme.

Como dizia, o início sugere ser um filme B, embora tenha a presença de Tim Roth, excelente ator, que sabe escolher os contratos que assina (ou seu empresário, tanto faz). Naomi Watts também está lá, mas desde King Kong não confio mais nela. E ainda há Michael Pitt, o adolescente especializado em psicopatas (vide Cálculo Mortal). Ainda não deu prá saber se é bom ator, mas psicopatas ele faz bem.

Enfim. A história é sobre dois adolescentes que aterrorizam uma família feliz, equilibrada, amorosa, classe média para alta, gente boa, casa limpa, música clássica, blá-blá-blá.

A violência dos rapazes é gratuita, absoluta, cheia de maneirismos e lúdica. É a violência pela violência. Lá pelas tantas, quando George, o pai, pergunta por que estão fazendo aquilo, Paul (o mais velho dos rapazes, Michael Pitt) começa a desfilar uma série de razões clássicas, o primeiro ponto alto do filme: infância perdida, família destruída etc. etc. A sua primeira resposta é a que vale: "não sei". Não há explicação para o que fazem, a não ser o fato de que gostam do que fazem. A razão, se existe, é a diversão. É, portanto, estética. Não moral, não social. Puramente estética.

A maneira educada com que se dirigem às vítimas, com uma fala lenta, estudada, é parte da estética da violência e de sua gratuidade: faz parte do jogo parecer outra coisa, encenar a polidez, o refinamento nas palavras e nas atitudes, assim como eles próprios são imaculadamente limpos, vestidos de branco, como jogadores de golfe. Matam, e continuam limpos. Este fato aponta para seu distanciamento dos eventos: embora sejam os protagonistas da violência, eles não estão de fato lá, nem emocionalmente, nem fisicamente.

Após mais ou menos dois terços do filme, um segundo evento importante acontece: Ann, a vítima, consegue se apropriar da arma e matar um dos rapazes, o mais jovem, Puddy ou Peter.

E então entendemos o filme.

Cuidado! Mais spoilers!

A morte de Peter faz Paul procurar desesperadamente um controle remoto que até então não havia aparecido na trama, até onde me lembre. Quando encontra o controle remoto, ele faz a cena recuar, até retornar ao momento anterior à reação da vítima. Feito isso, o filme continua, mas agora ele já sabe o que a mulher vai fazer, e a impede de agir. Tudo está bem novamente, e ele alerta a vítima de que não pode quebrar as regras.

Bem, vou poupar quem ainda lê este brogue dos eventos que se seguem. O que me interessa está aqui (e já contei o principal): é um jogo realmente. A conversa entre os dois rapazes, no barco, sobre realidade e virtualidade, apesar de rápida, retoma o fio condutor: a violência é real, mas é real no virtual.

Bom filme. Se entendi bem (e não importa se não entendi), o filme é uma crítica não somente à violência (real e virtual), mas também uma crítica à nossa indiferença diante da violência - o que o final sugere, quando tudo acontece como deve acontecer no jogo: zeramos este jogo. Vamos ao próximo.

Ou talvez não seja nada disso.

Quem se importa?