Friday, January 19, 2007

Amar é... (4): ...ter a quem culpar

Em 1764 o filósofo Jean-Jacques Rousseau resolveu escrever suas Confissões e deixou amigos e inimigos em pânico, tentando impedir a publicação da obra. De alguém como Rousseau, podiam esperar todo tipo de indiscrição. Para piorar, atreveu-se a fazer leituras públicas das Confissões. Mas, embora houvesse de fato inúmeras indiscrições nos relatos de sua vida, o alvo principal de Rousseau era suas próprias mazelas. Mesmo assim, não dá para admirar sua coragem, ou sua franqueza, ou sua capacidade de avaliar a si mesmo, porque todo o relato é eivado de um certo encantamento consigo mesmo e uma capacidade infinita de distorcer os fatos em um auto-engano bastante conveniente.

Uma das piores histórias das Confissões, senão a pior, revela o caráter dúbio de Rousseau, condizente com a escola romântica, da qual é o primeiro representante, e com o cristianismo:

Rousseau vivia de expedientes. Um deles era o de viver o tempo que fosse possível sob a tutela de uma amante rica. Entre elas houve uma certa Madame de Vercellis. Enquanto vivia em sua casa, apaixonou-se por uma serviçal, Marion. Três meses depois Madame de Vercellis faleceu e Rousseau, novamente sem destino, surrupiou "uma fitazinha cor-de-rosa e prata já velha". Uma coisinha de nada, que a morta não haveria de querer, e que o ajudaria a sobreviver até encontrar outra madame.

Bem, os herdeiros deram por falta da fita e a encontraram com Rousseau. Confrontado com os fatos, não hesitou: acusou Marion do roubo; disse que ela lhe havia dado a fita. Ele conta: "[ao acusá-la, Marion] deitava-me um olhar que teria desarmado o demônio, e a que o meu bárbaro coração resiste".

Mas isso não é tudo. O pior na história toda é a desculpa que Rousseau dá a si mesmo por ter agido tão mal: "Nunca a maldade esteve tão longe de mim como naquele cruel momento, e quando acusei a infeliz rapariga, é singular, mas a verdade é que o fiz por amizade para com ela. Tinha-a presente no pensamento, e desculpei-me com o primeiro objeto que se me ofereceu".

Em outras palavras: Rousseau amava tanto a mocinha que, ao procurar a quem culpar, só vinha à mente o nome dela, porque não pensava em ninguém mais.

2 comments:

Anonymous said...

:)))

Essa de 'amar é ter a que culpar' de certa forma é verdade. Quantos casais eu já vi (e também não me excluo disso) que fazem do relacionamento um exercício de acusação mútua.

Sei lá, parece que o convívio é mesmo uma máquina de transformar princesas em bruxas e príncipes em sapos.

Bjs, Sofista.

sofista said...

Oi Anônimo!

:-)))) Acho que o segredo é supor logo de partida que são mesmo bruxas e sapos. Assim o que é vier é lucro. :-)) O único problema é que perde-se a magia. :-)))

Bjs!