Saturday, April 30, 2005

Velharias 1: Filosofia para a morte das baratas

Esta é dos meus tempos de Cronista da Folha de Alface:
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DA IMORTALIDADE DA ALMA DAS BARATAS

Um diálogo entre Sócrates e Símias, convenientemente esquecido por Platão

SÓCRATES
Diga-me, ó Símias: não é precisamente a alma desligada e posta fora do corpo que caracteriza o que chamamos filosofar?

SÍMIAS
Isto é correto.

SÓCRATES
E não crês que as baratas têm uma alma desligada do corpo?

SÍMIAS
Certamente que sim.

SÓCRATES
E que, da mesma forma, sua alma é posta fora do corpo?

SÍMIAS
Precisamente.

SÓCRATES
Se é assim, concordas então que é preciso conhecer as baratas para bem filosofar?

SÍMIAS
Se tu o dizes, é porque é verdade.

SÓCRATES
Vejamos, então, caro Símias: por¬ventura a ausência de baratas não é próprio das casas em que seus moradores têm horror a elas?

SÍMIAS
Necessariamente.

SÓCRATES
E que, assim como há o desprezo pelas baratas, há também o desprezo pelos filósofos?

SÍMIAS
Bem o dizes.

SÓCRATES
Basta, então, que tenhas a bondade de refletir um momento sobre este animalzinho para que percebas toda a sua grandeza.

SÍMIAS
Que queres dizer, ó Sócrates?

SÓCRATES
Sabes que, assim como acontece com a alma do filósofo, a alma das baratas se inclina para o que está acima delas?

SÍMIAS
Por certo que sim. Elas se esforçam para voar.

SÓCRATES
Bem o compreendes, ó Símias. Mas, semelhantemente aos homens, nem todas podem voar, ainda que, no tocante às baratas, seja evidente que todas elas se inclinem nesta direção. Compete-nos, pois, no exercício da busca à verdade, investigarmos primeiramente este animalzinho.

SÍMIAS
Como és sábio, ó Sócrates!

SÓCRATES
Se estamos de acordo sobre este ponto, passemos então ao seguinte. Não há, a meu ver, algo que seja mais verdadeiro que isto: que o vôo da barata é rasante e que ela mantém o trasei¬ro levemente inclinado num ângulo de 35 graus.

SÍMIAS
Sim, por certo.

SÓCRATES
Consideremos, pois, que freqüentemente ela se desequilibra e vem parar direto em nossas costas ou cabeças.

SÍMIAS
O que dizes é a mais pura verdade.

SÓCRATES
Por conseguinte, não há absolutamente razão alguma para que as baratas possuam asas e voem.

SÍMIAS
Absolutamente nenhuma.

SÓCRATES
Sendo assim, devemos considerar as razões que levariam uma barata a ter asas e tentar voar.

SÍMIAS
Mas de que forma, ó sábio Sócrates, esta investigação nos levará à compreensão do que chamamos filosofar?

SÓCRATES
Diga-me antes, caro Símias, o que entendes por filosofar.

SÍMIAS
Parece-me, Sócrates, que consiste na busca da verdade.

SÓCRATES
Bem o compreendes, ó Símias. Sendo assim, diga-me: quando investigamos as baratas, não estamos, ao mesmo tempo, procurando compreender a verdade sobre as baratas?

SÍMIAS
É o que parece, quando tu o dizes desta forma.

SÓCRATES
Sendo assim, parece-nos que devemos investigar antes outra questão e, respondendo à segunda, venhamos a responder à primeira, o que nos levará a outra questão, respondida após termos encontrado respostas para as demais.

SÍMIAS
Parece-me um tanto confuso, ó Sócrates.

SÓCRATES
E é, com efeito. Diga-me, Símias, não é verdade que tudo o que existe, existe de algo e para algo?

SÍMIAS
Ouço com prazer tua explicação.

SÓCRATES
Não ignoras tu que a barata, ao ver um retrato de si mesma, pode recordar a si mesma?

SÍMIAS
Seguramente que sim.

SÓCRATES
Sendo assim, o ponto de partida da barata é precisamente seu ponto de chegada.

SÍMIAS
Assim, pois, o que pretenderias, ó Sócrates? Acaso afirmas sem dúvida que existe o igual em si mesmo e que a barata, quando recorda, recorda seu igual?

SÓCRATES
E por que não, com efeito? Não concordamos anteriormente que a alma é superior ao corpo?

SÍMIAS
Não tenho a tua sabedoria, caríssimo Sócrates, nem a tua memória.

SÓCRATES
Com certeza tens, mas não o sabes. Em todo caso, não concordas que estes animais, como existentes, existem de algo e para algo?

SÍMIAS
Por certo.

SÓCRATES
Por conseguinte, as baratas existem de outras baratas e para outras baratas?

SÍMIAS
Naturalmente que sim.

SÓCRATES
Assim, pois, obtemos este princípio geral da criação, segundo o qual é das coisas que vem as coisas e, assim como são as pessoas, são também as criaturas.

SÍMIAS
Perfeitamente.

SÓCRATES
Temos disto urna prova magnífica: interroga-se uma barata. Se as perguntas forem bem conduzidas, por si mesma ela dirá como são as coisas.

SÍMIAS
Tens razão, ó grande Sócrates.

SÓCRATES
Entretanto, ó Símias, há algo mais a ser investigado. Se as baratas vêm de outras baratas, é correto dizer que o conhecimento que possuem e não sabem que possuem vêm de outros conhecimentos de outras baratas.

SÍMAS
Por Héracles, vejo que tens razão.

SÓCRATES
E o fazes, Símias, porque, assim como as baratas, tens memória, embora não o soubesses até bem pouco.

SÍMIAS
Compreendo, Sócrates, e percebo agora quão parecidos somos com os insetos.

SÓCRATES
É verdade, mas não te esqueças de que, assim como alguns insetos se distinguem de outros insetos, alguns homens se distinguem de outros insetos.

SÍMIAS
Assim, pois, pergunto novamente: o que pretendes, ó ditoso Sócrates?

SÓCRATES
Não te aborreças, caro Símias. Procura em ti mesmo as respostas.

SÍMIAS
Tu afirmaste, ditoso e sábio Sócrates, que estes animais deveriam entregar seus próprios corpos ao abandono.

SÓCRATES
Bem o recordas.

SÍMIAS
E, entregando a si mesmo ao abandono, encontraria a si mesmo?

SÓCRATES
Parece-me claro que este animal somente alcançaria o açúcar verdadeiro se renegasse sua condição de barata existente.

SÍMIAS
Assim, ó Sócrates, crês que as baratas somente seriam verdadeiramente baratas renegando sua existência?

SÓCRATES
É precisamente o que acabei de afirmar.

SÍMIAS
E que, por conseguinte, seria necessário que morressem para que vivessem?

SÓCRATES
É o que digo.

SÍMIAS
Esclareça-me pois, ditoso Sócrates, de que forma precisamente a filosofia para a morte das baratas pode de fato resultar na morte das baratas.

SÓCRATES
Tua pergunta demonstra toda tua sabedoria, Símias. Entretanto, para que te responda, precisamos antes investigar outra questão e, respondendo a esta por meio de outra, retornemos ao questionamento que tu tão sabiamente fizestes. Só então poderemos saber com absoluta certeza de que forma a filosofia das baratas pode efetivamente contribuir para inspirar nelas o desejo espontâneo de morrer. Tenhas um pouco mais de paciência, caro Símias, e retornemos à questão anterior. Assim, pois, vejamos que...

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