Thursday, July 02, 2009

O nascimento da KKK

Imagine um filme capa-espada, com heróis, mocinhas e vilões.

Imagine o mocinho clássico, imbuído de bons sentimentos, honra, amor à família e desejo de construir um mundo melhor.

Imagine a mocinha que, como boa filha que é, defende o pai e se afasta do amado por não compreender seus bons propósitos.

Imagine o vilão, um político que não hesita em fraudar eleições, em se aliar a tipos exacráveis e em fazer escolhas que sabidamente vão destruir a ordem vigente.

Agora veja: o vilão apóia a luta dos negros pela igualdade e o mocinho é o fundador da Ku Klux Klan.

A atitude interesseira do vilão acaba resultando na morte de uma mocinha branca, linda, sonhadora, amorosa e inocente, que prefere se matar a permitir que um negro a toque. A consequência imediata é a criação da KKK pelo irmão da vítima, o mocinho-herói, que luta por uma causa nobre.

Numa sucessão de eventos, a cidade é "tomada" pelos negros, que oprimem os brancos, negando a eles todos os privilégios naturais de sua superioridade ariana. Em meio a tudo isso, os brancos se unem para libertar a cidade e restaurar a paz. Em uma cena antológica, o clã invade a cidade a cavalo, atirando para todos os lados, e salva a mocinha, prestes a se casar à força com um negro.

Ordem restaurada: os negros que não são mortos são devolvidos a seu lugar natural, o de servos submissos. Os negros bons são aqueles que se conformam à sua condição inferior e lutam pela causa dos brancos. A milícia negra foge como rato assustado, diante da coragem branca. No fim das contas, tudo o que os negros queriam era casar com mulheres arianas, horror maior dos brancos.

Enfim, negros subjugados e final feliz para todos. O mocinho casa com a mocinha; o irmão da mocinha (cujo ato mais heróico foi matar um negro para salvar uma família branca) casa-se com a irmã do mocinho.

Sei que Griffith é considerado um gênio do cinema, e há muito tempo desejava assistir a seus filmes. Também acredito que uma obra de arte deva ser avaliada por suas qualidades intrínsecas, e não por razões morais. Mesmo assim, fiquei estarrecida com o filme.

Estava atenta demais à história para perceber detalhes técnicos, aqueles que tenho condição de avaliar, mas não pretendo assisti-lo novamente. É claro, há recursos interessantes no filme, como o de contar eventos simultâneos, mas fico por aqui. O filme me deu náuseas. É um legítimo capa-espada, maniqueísta, que endeusa a cor da pele, associando-a com a verdade, a legitimidade, a coragem, a inteligência, o caráter e a honra e demoniza o negro, cujo direito de votar elevou a falta de senso moral, a incompetência e a quase oligofrenia à direção de uma cidade antes próspera e feliz.

O filme é um retrato grotesco, mas fiel, de uma América que se reconhece branca, liberal, honesta, honrada e valente.

Só faltou explorar a associação histórica entre a Ku Klux Klan e o protestantismo.

Mas isso seria exigir demais de Griffith.

2 comments:

Rodrigo Cássio said...

"Só faltou explorar a associação histórica entre a Ku Klux Klan e o protestantismo. Mas isso seria exigir demais de Griffith."

Não, não é exigir demais. Griffith é isso mesmo. Esse filme também me deixa atordoado.

Griffith inventou a figura centralizada do diretor de cinema e aprimorou a estrutura narrativa reproduzida nos filmes que, logo depois dele, comporiam o grande escopo do cinema clássico.

Mas o que mais chama a atenção na maior parte de suas obras, sem dúvida, é esse moralismo torpe. A cultura dos EUA é aquilo lá, afinal de contas. Essa é a matriz do Ocidente que há pouco dizia propagar a liberdade pelo mundo.

Para sua felicidade, Griffith não viu Obama, um negro, chegar ao poder. Morreria de desgosto!

sofista said...

Oi Rodrigo!

Mesmo para um filme de 1915, "O nascimento de uma nação" é chocante. O difícil é reconhecer algum valor, digamos, técnico, nele. Não nego que tenha, mas qualquer valor que Griffith possa ter tido como diretor fica apagado diante da história, especialmente se o compararmos com a densidade psicológica dos filmes de Murnau.

Bem, não dá prá gostar de tudo. :-)))