Wednesday, July 15, 2009

O homem no uniforme (1)

Definitivamente, Murnau era um gênio.

Ontem, assisti a Phantom. Hoje, vi The Last Laugh, A última gargalhada, e gostei ainda mais que do anterior.

Phantom é tão idealista quanto seu personagem principal. The Last Laugh é realista, denso, triste, pessimista, depressivo. Mesmo o final, que comentarei mais à frente, trai seu propósito declarado, que é o de transformar um desfecho inevitavelmente deprimente em algo redentor.

A primeira característica marcante de A Última Gargalhada é a ausência de textos explicativos e ordenadores da história. Há uma carta lida, absolutamente necessária para a boa compreensão do enredo, mas é só. No mais, toda a história é contada unicamente por imagens, o que nos obriga a um esforço extra de compreensão. Quase ao final há um texto explicativo, mas que oferece uma virada na história.

Lembrei, enquanto assistia ao filme, de ter lido em algum lugar que Arnheim considerava o cinema mudo superior ao falado por sua capacidade de apresentar abstrações, perdida com o acréscimo do som. Neste filme de Murnau, sem o auxílio dos textos explicativos, essa capacidade de abstração é exigida o tempo todo. O filme impressiona a começar por esta característica. Não há som, não há texto, mas as imagens são eloquentes, em uma história coerente do começo ao fim.

Uma outra característica importante de A Última Gargalhada é que as personagens não têm nome, o que está acordo com a ausência de textos, mas também tem um propósito específico: sem nome, as personagens são apenas uma função; suas identidades se confundem com o que fazem, ou com o lugar onde vivem, e é exatamente por aí que começo a contar a história.

O porteiro de um hotel de luxo, já de certa idade, orgulha-se de ser o que é, e credita seu valor a essa função. É apenas um porteiro, mas no cortiço onde mora é tratado como alguém importante, que trabalha em um lugar importante e usa uniforme de gente importante. Seus dois únicos prazeres na vida são servir aos clientes importantes e caminhar de uniforme pelo cortiço em que vive. Amando-se no uniforme, ele caminha como se fosse um dos clientes do hotel em que trabalha, ou um general chegando em casa depois de cumprida uma missão muito importante.

A partir desse ponto, spoilers. Alguém se importa?

Infelizmente já não é tão novo, e não tem mais o fôlego e a energia que seu trabalho exige. Infelizmente, também, é visto pelo gerente do hotel em um momento de fragilidade, quando tem de se sentar para recuperar as forças. Como resultado, é dispensando da função de porteiro, cartão-postal do hotel, e conduzido à função degradante - e oculta - de limpar banheiros. Antes, era a primeira pessoa que todos viam ao chegar ao hotel. Agora, é alguém que ninguém vê, que ninguém quer ver, que ninguém sequer olha.

Vai-se embora a função importante, e com ela o uniforme bonito, sinônimo de respeitabilidade, de identidade, de nobreza e de valor. Mas o uniforme é o homem. Devolvê-lo significa perder a referência. Significa também chegar em casa sem ele.

Quando tem de devolver o uniforme, o porteiro, que antes andava olhando para o mundo de cima para baixo, agora mal consegue andar, inclinado, claudicante, carregando o peso do mundo nas costas. Sem o uniforme, não é mais um homem; perdeu sua humanidade. Antes era tudo. Agora, é nada.

A trajetória da personagem segue em linha descendente. O fim é previsível: o porteiro morre, com a vida se exaurindo pouco a pouco nos banheiros que lava, no desprezo dos vizinhos, na piedade da família, no anonimato de sua nova função.

E então, a supresa final, que Aristóteles chamaria de peripécia, a reviravolta na história: sabemos que o homem vai morrer como verme, quando não pode mais nem viver nem morrer como homem. Sabemos disso muito bem, mas vamos conceder a ele a única saída possível, já que até mesmo a esperança se perdeu. Vamos conceder-lhe o inverossímil, o que a história não autoriza, o que a realidade não permite: vamos conceder-lhe a riqueza inesperada, a redenção da pobreza infinita pela riqueza infinita, a redenção da fome pelo banquete de reis, a redenção da desigualdade social pela benevolência, a redenção da injustiça pela justiça.

Por que não?

Se a vida não permite nada disso, ao menos a fantasia permite. E o que é o cinema, senão fantasia?

Esta é a última gargalhada.

Como disse inicialmente, este desfecho improvável trai deliberadamente o seu propósito, mas isso é assunto para outro momento.

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