Saturday, December 23, 2006

A chácara do tio Gugu

Na infância, eu costumava viajar com a família para uma cidade do interior, onde ficava hospedada, juntamente com vários parentes, na chácara do Tio Gugu. A casa era bastante espaçosa, com vários quartos, e pertencia à família há coisa de um século. Nela, várias pessoas haviam morrido, ainda no tempo em que os doentes ficavam em casa. Por essa razão, havia um sem-número de histórias de fantasmas, de espíritos que vagavam pelos corredores, coisas assim.

Em uma destas viagens, estava no quintal da casa com os primos, de mesma idade, mas por uma razão qualquer de que não me lembro, eles me excluíram da brincadeira. Sem alternativa, passei a caminhar sozinha pelos limites da chácara, me afastando da casa. Então vi um toco de uma árvore que havia sido cortada e me surgiu uma idéia para ser aceita novamente no grupo. Sem pensar muito, comecei a gritar e a chorar.

Beleza. Logo os primos apareceram, correndo esbaforidos, e querendo saber o que tinha acontecido. Eu apontei para o toco de árvore e disse ter visto um rosto ali.

Não vi. Era só prá chamar a atenção mesmo.

De início, todos riram, mas eu me mantive firme. Quando tentavam se aproximar da árvore, eu gritava para não fazerem isso, que tinha alguém ali olhando para nós, etc etc. Tanto insisti, tanto gritei de medo que o inusitado aconteceu: alguém mais viu o rosto! E então, um a um, todos começaram a ver. Uma prima ensaiou um desmaio, outra começou a soluçar alto. Em pouco tempo o grupo estava aterrorizado... e eu estava estupefata.

Por que todo mundo via o rosto e eu, não?

A estratégia para ser aceita no grupo me deixou de fora dele: todos viam o rosto na árvore, mas eu só via a árvore. E fiquei indignada de novo: por que só eu não vejo? O que há comigo que não consigo ver?

Então uma tia, que escutara os gritos, surgiu, riu da história, deu uns tapas na árvore e acabou com a farra, mas o episódio não terminou aí. Não para mim.

Durante muito tempo, tentei entender o que havia acontecido; porque eu havia sido excluída do privilégio de ver o rosto, quando eu mesma tinha alertado a todos sobre ele.

Então, muito tempo depois, compreendi: eu havia acreditado em minha própria mentira, simplesmente porque todos acreditavam nela. Eu sabia que era mentira, mas quando meus primos começaram a gritar e chorar, acreditei mesmo que eles viam o rosto na árvore, que havia de fato algo ali.

Neste episódio a semente do ateísmo foi plantada em minha cabeça. É claro que foi preciso muito tempo para que tomasse forma, mas a sensação de acreditar no que eu havia inventado, no que sabia que não era real, e nem mesmo imaginação minha, me fez perceber como é fácil nos iludirmos. Bastou, nesse caso, que outros acreditasssem ou fingissem acreditar para se tornar real mesmo para o autor da mentira.

7 comments:

Anonymous said...

Ai, meu deus, perdi o meu comentário...

Alguma coisa sobre Osho, fé, cachorro mordido por cobra e linguiça...

Eitcha....

Conhece osho? é tão legal quanto o Inri.

Minha ex-mulher adorava.

bjs... desculpe meu segundo comentário de pileque.... :))))))))

sofista said...

Oi Anônimo!

Que pena que perdeu o comentário. Gostaria de ter lido.

Deixe-me tentar adivinhar. O cachorro foi mordido por uma cobra porque achou que era uma linguiça.

Sobreviveu?

Qual é a ligação de Osho com tudo isso? :-)))

Sobre Osho, só conheço o nome, mas desconfio que é melhor deixar como está. :-)))

Bjs

Anonymous said...

Relembrando o comentário de ontem:
Ao ler esse trecho do post, a que vc começou a acreditar no rosto que alertara as outras crianças mas que vc não vira, me recordou um livro do Osho (acho que é o "Libertador" ou alguma coisa assim) em que ele argumentava que a fé vinha depois do discurso. Que a fé era resultado do número de pessoas que acreditavam no que era dito e que assim induziam o orador a acreditar no que ele próprio dizia. Ele exemplificava com o caso do discurso anti-semita de hitler (ao que me parece o Osho ignorava que o anti-semitismo era anterior a hitler e que já era muito difundido na europa e outras partes do planeta).
E o ditado:"cachorro mordido po cobra tem medo de linguiça" era referente a como o episódio do rosto no tronco lhe tornou mais incrédula. ;)

bjs.

Anonymous said...

Osho foi mais um "guru" indiano que os hippies americanos tanto adoram. Foi perseguido pelo governo americano, fundou uma sociedade "tantrica" na Índia, mas claro que a maioria dos seus discípulos eram da terra do tio sam.
Aquela coisa de sempre:
Defendia o amor livre como forma de se acabar com os males da sociedade. Que as crianças não fossem criadas por uma célula familiar nos moldes que conhecemos, e sim pela comunidade.
Sei lá, um tido de W. Reich indu.
Ságitariano com ascendente em peixes (daí se achar um novo buda).
Ahhh... ele pregava despreendimento a vida, mas possuia 95 limousines. Uma de suas secretárias foi acusada de fazer um atentado contaminando a comida em um evento. Alguns dizem que morreu de CIDA.
Eu acho que ele era banguela. De tantas fotos dele ele nunca sorri de uma forma com que apareçam os dentes.

Mas ele é bacana.
Como todo pisciano tinha um complexo de Messias.

Bjs, Sofista.

Ahhh, o Inri também é pisciano como também o era o nosso Salvador. :))))))

sofista said...

Oi Anônimo!

Puxa. Eu não sabia que Osho havia escrito algo assim. A experiência foi bastante marcante para mim, e determinou de algum modo o que penso hoje, mas não tinha idéia de que havia algo escrito que se assemelha ao que vivi. O ditado serve perfeitamente ao caso. :-)

Quanto à idéia de amor livre e crianças em comum, Platão já defendia esse tipo de comunidade, a partir do modelo espartano e da comunidade pitagórica. Aristóteles contra-argumentava que, quando os filhos são de todos, não são filhos de ninguém e que sem a propriedade privada não há estímulo para o esforço individual, o que me parece uma análise bastante correta.

Não penso que o desejo de acabar com o mal, de reformar o homem, tenha um caráter humanitário. Ao contrário, penso que a recusa da condição humana e o desejo de mudar o mundo para ajustá-lo a valores pessoais nada mais é que intolerância, autoritarismo e um enorme desejo de ser deus.

Nada de peixes ou sagitário em meu mapa astral. :-))

A astrologia, ao contrário, me instiga a curiosidade. Pretendo estudá-la um dia para entender como funciona.

Sobre Reich, não tinha idéia de que seguia por aí. Li alguma coisa dele (Escute Zé Ninguém e O assassinato de Cristo) e tenho planos de ainda ler a Análise do Caráter, porque acho a associação que faz entre tipo físico e personalidade muito interessante, mas não avancei o bastante para conhecer melhor suas idéias. Em todo caso, e me perdoe a ignorância, mas acho que essa coisa de orgone é meio mística, por mais que ele tente explicá-la pela fisiologia. :-))

Bjs

Anonymous said...

Sabe, quando eu falo de Reich na verdade eu me refiro a uma impressão meio esquecida de suas ideias, pois o último livro que lí do cara foi quando tinha 16 anos (acho que foi "a função do orgasmo").
E essa impressão que vc teve da teoria do orgônio também foi a minha. Ahhh, ele fundou (o Reich) uma sociedade nos EUA se não estou enganado ela se chamava Organópolis. E lá ele vivia as tardes testando seu deirecionador de orgônio, fazendo buraco em nuvens. Ele até mandou um "concentrador de orgônio" para o Einstein, que ao não querer testa-lo deixou Reich um tanto ressentido. Foi preso e assassinado na prisão (ou foi o osho?).
Quando comparei o Rajneesh com o Reich é mais pelo aspecto curativo que ambos conferem ao sexo, a eles terem fundado sociedades alternativas, por serem perseguidos e posteriormente presos no estados unidos, pela influência de Nietzsche na obra deles e também pela fama de loucos que tinham.

Voltando ao orgone, a impressão que me ficou foi que no final da vida de reich o orgônio se tornou uma espécie de panaceia para todos os males e também um misto de prana indu.

Pretendo lê-lo novamente. Esta na minha lista de coisas a fazer. Mas tem tanta coisa antes (aprender o uso correto da vígula por exemplo) :))))

Ahhh, tenho ascendente em gêmeos, mais uma desculpa astrológica para o meu conhecimento somente superficial de tudo o que falo :)))

bjs, Sofista.

PS: estou tendo dificuldade com o Sartre. Vc acha que é melhor ler husserl antes dele?

sofista said...

Oi Anônimo!

Organópolis! :-))) Isso também merece um post. Que coisa mais surreal!

Ler Reich aos dezesseis anos deve ter sido uma experiência e tanto.

Eu não sabia de nada disso sobre Reich. O que li dele foi há uns oito anos atrás, porque uma amiga psicóloga o mencionava com frequência e fiquei curiosa. Tenho também A Função do Orgasmo e Sobre o Combate Sexual da Juventude, mas não consegui passar das primeiras páginas. Não me lembro porque. Em todo caso, ainda quero voltar a ele, embora tenha mais interesse na Análise do Caráter e na idéia de peste emocional.

Sobre Sartre, é difícil dizer se é melhor ler Husserl antes. Por um lado, sim, porque Sartre é basicamente um fenomenólogo, embora a influência de Kierkegaard também seja muito marcante. Por outro, o texto de Husserl é um nó, enquanto o de Sartre é bem mais claro. Eu quero dizer: algumas idéias fundamentais da fenomenologia são apresentadas de modo mais claro em Sartre. A dificuldade pode ser minha, claro, mas acho o texto de Husserl bem mais denso e difícil.

Um professor, doutor em Sartre, costuma dizer que o melhor dele é A Transcendência do Ego. Quando procurei esta obra, não a encontrei em português (ao menos não estava disponível na ocasião). Encontrei apenas uma versão em espanhol, na internet. Basicamente, o que ele diz na Trancendência do Ego é o que está dito em O Ser e o Nada, de modo mais direto, e sob uma influência ainda maior da leitura de Husserl.

Embora não esteja trabalhando com Sartre atualmente, eu o conheço razoavelmente. Posso discuti-lo, se quiser.