Thursday, May 01, 2008

Diversão não

"As pessoas querem divertir-se. Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu tempo livre, eles só quererem alívio simultaneneamente do tédio e do esforço." (Theodor Adorno, Sobre a Música Popular)

A julgar pelo que Adorno diz no parágrafo acima, querer diversão, querer alívio do tédio e do esforço é condição de impossibilidade de apreciação da arte.

A medida de avaliação da arte (se boa ou não) deve ser externa a ela?

27 comments:

Anonymous said...

Oi, Sofista!

Boa pergunta. Eu penso que a medida de avaliação não precisa ser externa à "condição de impossibilidade" de que fala o Adorno. Mas isso quando se trata somente de julgar se a arte é boa ou não, e nada mais que isso.

Pois há também a possibilidade de julgar a arte junto com a própria sociedade que a produz. Se o Adorno critica a música popular (e tudo mais da indústria cultural) por não ter qualidade estética, essa crítica é sustentada por uma contestação maior das relações sociais que produzem essa arte. E aí o significado de uma boa arte depende da sociedade que se quer defender.

Se uma crítica à sociedade como um todo não for requerida, bem, aí é possível cantar, por exemplo, Leandro e Leonardo. Isso com todo o entusiasmo, divertindo-se e aliviando o tédio, sem nenhum angústia por ter um senso estético degenerado. Eu mesmo faço isso de vez em quando, rs.

E você, o que pensa?
Abraço!

Obs: Aqui o endereço do meu blog: http://otransedosmisticos.wordpress.com
Será bem vinda!

sofista said...

Oi Rodrigo!

Que bom que escreveu. Vou postar uma provocação para você que, espero, renda um bom debate. :-))

Quanto ao que escreveu, estou de acordo, se entendi bem. O meu ponto é: o critério de avaliação de uma obra de arte (ou do que se diz arte) não pode se basear em elementos, quaisquer que sejam, alheios à própria arte (acho que já discutimos sobre isso a respeito de Tropa de Elite). O problema não está, em minha opinião, nas considerações de Adorno a respeito da sociedade que produz a arte (ou o produto cultural), mas na afirmação de que a avaliação da arte depende da atitude do avaliador e, sobretudo, depende das atitudes que ele, Adorno, acha pertinentes. O discurso da razão sobre a arte é válido para entendermos melhor o processo, mas não creio que possa ou deva ir além disso, sob pena de ser discurso vazio.

Continuo.

sofista said...

Continuando:

"Pois há também a possibilidade de julgar a arte junto com a própria sociedade que a produz."

A possibilidade existe, sem dúvida, mas não penso que seja pertinente. Pode-se dizer de uma obra de arte que seja datada, mas o critério em questão aqui é a universalidade que, penso, é interno à obra, e pouco diz, como critério, da sociedade que a produz (exceto que não a ultrapassa).

Continuo

sofista said...

"Se uma crítica à sociedade como um todo não for requerida, bem, aí é possível cantar, por exemplo, Leandro e Leonardo. Isso com todo o entusiasmo, divertindo-se e aliviando o tédio, sem nenhum angústia por ter um senso estético degenerado."

Meu post ficou grande demais e sumiu.:-(( Vou tentar recuperar tudo o que escrevi.

sofista said...

Com o desaparecimento do post, perdi o rumo. ) Mas vamos lá, meio fora de ordem: que se faça uma crítica à sociedade, tudo bem. O que não deve acontecer, em minha opinião, é a avaliação da obra de arte a partir da crítica à sociedade, até porque o que uma época entende como lixo cultural pode ser visto posteriormente como arte (como é o caso das comédias de Shakespeare, consideradas lixo em sua época – e talvez nem sejam grande coisa, talvez seu gênio esteja apenas nas tragédias). Também pode ser que um produto gerado pela indústria cultural seja visto por outra época como arte, conforme outros critérios. O que quero dizer é: não se pode afirmar que um produto cultural não é arte meramente porque foi gerado por uma indústria da cultura. A não ser, é claro, que queiramos determinar por critérios não-formais o que é arte e o que não é; o que é boa arte e o que é arte menor.

sofista said...

Por que um produto da cultura não pode incomodar? Não mudamos nosso modo de encarar uma série de problemas motivados pela identificação com personagens de filmes industriais? Não passamos a ver com outros olhos o que antes eram objeto de preconceito?

O que há de errado em cantar Leandro e Leonardo? Sobretudo, o que há de errado em querer diversão? O prazer imediato e não refletido, criticado por Adorno, vale menos só porque dura menos e não requer necessariamente elaboração conceitual?

O que é um senso estético degenerado? É possível medir em si mesma e por si mesma uma experiência estética? Isto não é moralização (no sentido filosófico, de racionalização e hierarquização) da experiência estética? Hierarquizar o gosto tem algo a ver com o gosto?

Muitos filósofos (senão todos) discordariam radicalmente de tudo o que escrevi. Mas sou sofista. :-))

Há mais a dizer, mas vou deixar para outra ocasião. Essa resposta ficou extensa demais e já provoquei o suficiente. :-))

Bridagim por escrever. Vou dar uma espiada em seu blog agora.

sofista said...

Ops, esqueci de dizer: a condição de "impossibilidade" é invenção minha. :-))) Adorno não disse isso não. É só uma leitura torta que fiz do artigo sobre a música popular.

Inté

Anonymous said...

Oi Sofista!

Quando afirmo que é possível apenas julgar se a arte é boa ou não, e que, de maneira diferente disso, também é possível avaliar a arte junto com a sociedade que a produz, penso que meu comentário acabou não deixando claro o que eu queria dizer.

O que quis dizer sobre "simplesmente julgar se a arte é boa ou não" foi o seguinte: eu posso ouvir um Leandro e Leonardo, e, com base apenas nas minhas impressões imediatas, julgar se a música deles é ou não é boa para mim.

Não entraria aqui nenhuma reflexão sobre a arte enquanto produto de uma sociedade/cultura, nem sobre a minha condição de ouvinte. Simplesmente eu ouviria, e, digamos, deixaria o meu gosto agir "naturalmente".

A outra atitude seria a que inclui uma crítica, uma reflexão sobre a arte, sobre a cultura e a minha própria condição como ouvinte. Esse seria o caso de julgar a arte junto com a sociedade que a produz.

Anonymous said...

Pois bem, o que me parece é que a primeira atitude, ainda que não se preocupe em relacionar a arte e a cultura, não deixa de trazer à tona a arte como produto cultural. Se, enquanto julgador, eu me dou conta disso ou não, é outra coisa.

Penso que é impossível uma avaliação da arte que escape do pertencimento dela a uma sociedade. Enquanto um ouvinte satisfeito de Leandro e Leonardo, eu sou alguém que afirma um certo tipo de arte e um certo tipo de cultura. Dizer que essa arte é boa, conforme a minha impressão imediata, corresponde a dizer que a cultura que a produz é boa (ao menos no que diz respeito à produção da arte, à "cultura artística" dessa sociedade).

Também eu, como julgador, não posso ser outra coisa que não um sujeito de juízo dado em um certo contexto de formação cultural. Pois o gosto é formado socialmente - Frankfurt dizia isso, e eu concordo (e você também, pelo que escreveu). Por isso, o gosto pode se transformar à medida que a sensibilidade passa por uma educação, integrando-se a um outro sentido de "social" (por exemplo, um outro grupo social; tenho um primo que começou a ouvir rock tão logo se tornou adolescente).

Anonymous said...

Diante desses esclarecimentos, eu posso discutir melhor a sua exigência de que o juízo sobre a arte se prenda à própria obra, e que, assim, considere exclusivamente a universalidade. De acordo com o que eu escrevi acima, eu concordo e não concordo com você. Concordo que o juízo deva se preocupar principalmente com a própria obra, mas não concordo que esse juízo possa remeter a uma universalidade independente das condições em que se dá a realização e a apreciação da obra.

Foi interessante você lembrar de Tropa de Elite. Em um filme que diz respeito tão enfaticamente à realidade brasileira, seria possível um juízo que não fosse atravessado pela relação do espectador com essa realidade? Seria possível julgar a obra a despeito do que é para nós o Brasil, a favela, a violência?

É claro que há muitas coisas que motivam Adorno a condenar os produtos da indústria cultural, e tudo o que escrevo aqui não tem exatamente o objetivo de defender Adorno. Mas eu não sei se é possível questionar a crítica à indústria cultural cobrando uma postura "neutra" do sujeito de juízo. É exatamente porque o valor das obras muda com as épocas (como Shakespeare) que o juízo de uma obra deve se compreender como o de alguém que está localizado em um contexto e que seguiu uma certa trajetória onde se formou como apreciador da arte.

Anonymous said...

Tentando ser mais direto, o problema em questão é: o que legitima a afirmação de que uma arte é boa ou ruim? A minha resposta é: depende da instância em que o julgador se coloca, sendo que cada instância confere essa legitimidade dentro de seus limites. Mas nenhuma instãncia pode ser isenta de refletir uma concepção de mundo, tanto a que define o sujeito de gosto quanto a que define a própria obra como uma obra de arte (e aí entra, inclusive, a obra como diversão).

Ufa! Valeu a discussão. Espero ter entrado em sintonia com o que você disse. Agora, vou ali ver o post sobre Richter. rs

Anonymous said...

Talvez eu ainda deva melhorar a seguinte idéia: é inevitável que eu afirme uma certa concepção de mundo e de arte ao dizer que uma obra é boa seguindo a minha impressão imediata (como no nosso exemplo, Leandro e Leonardo). Mas isso não significa que esse sujeito de juízo se filie completamente (ou ideologicamente) a essa concepção. Ele apenas reverbera a existência dessa concepção e a penetração dela na nossa formação como sujeitos de gosto.

Nesse sentido, um adorniano ortodoxo pode muito bem desfrutar de Leandro e Leonardo, ainda que a sua insatisfação com a indústria cultural o tenha levado a buscar outras formas mais complexas de arte. Isso seria possível desde que a sensibilidade desse sujeito tivesse se formado de uma maneira tal que a música sertaneja lhe é agradável.

sofista said...

Oi Rodrigo! Desculpe a demora em responder.

“Penso que é impossível uma avaliação da arte que escape do pertencimento dela a uma sociedade.”

-- Não penso assim. É possível avaliar uma obra de arte por suas características internas, tais como a técnica empregada, a superação desta técnica, o estilo narrativo, os conceitos que subjazem à arte, a sua universalidade (de que falarei novamente mais à frente), a originalidade etc. Mesmo que esta medida não seja capaz de fechar em um conceito a idéia de beleza, mesmo que seja uma tentativa de objetivação do belo, é possível medir a arte de tal modo que a época que a produziu, ou o artista, desapareçam da avaliação. Isto não significa dizer que a arte não pertence a um tempo, como realidade histórica, mas sim que há obras de arte que são póstumas e, ao fazer esta afirmação, não é a sua época que está em questão, mas sim a superação desta época. Claro que, para fazer a afirmação anterior, é preciso de algum modo considerar a época, mas o critério de avaliação, que estou julgando aqui, transcende esta época e suas especificidades.

sofista said...

“Enquanto um ouvinte satisfeito de Leandro e Leonardo, eu sou alguém que afirma um certo tipo de arte e um certo tipo de cultura.”

-- Concordo que isto é o que acontece, mas meu argumento diz respeito a critérios de avaliação. Pode-se julgar que estes critérios estão limitados a medidas empíricas e subjetivas, mas o que afirmo é que, ainda que sujeitos de gosto particulares possam expressar sua visão de mundo, seus valores, sua cultura ao dizer “gosto disso” e “não gosto daquilo”, critérios objetivos não podem depender de valores empíricos, relativos e subjetivos. Qualquer sujeito pode apreciar ou depreciar uma obra de arte, mas ela continuará sendo boa ou má arte conforme critérios alheios a estas determinações empíricas. Se eu disser que detestei Tropa de Elite, ou que apreciei bastante, é certo que estou refletindo uma visão de mundo particular, mas isto em nada muda o mérito ou demérito da obra em si. O “bom filme” pode significar tanto o que me agrada quanto “bom cinema”. É ao segundo caso que me refiro ao falar de critérios objetivos.

sofista said...

“Dizer que essa arte é boa, conforme a minha impressão imediata, corresponde a dizer que a cultura que a produz é boa (ao menos no que diz respeito à produção da arte, à "cultura artística" dessa sociedade).”

--- Não creio. Podemos apreciar Bosch e recusar a cultura que a gerou (sob os aspectos que mencionou). Ou ainda, podemos recusar o belo como expressão do divino, como entendia o medievo, e ainda assim apreciar os quadros de madonas, cristos e quetais. Agora, se falamos em técnica, tenho de concordar que a apreciação de uma arte implique a apreciação da técnica empregada e, neste sentido, de uma cultura artística, como diz. Mas então isso só confirma meu argumento: a técnica é uma medida interna, não externa à obra de arte, ainda que pertença, como inovação, a uma época específica.

sofista said...

“Também eu, como julgador, não posso ser outra coisa que não um sujeito de juízo dado em um certo contexto de formação cultural. Pois o gosto é formado socialmente - Frankfurt dizia isso, e eu concordo (e você também, pelo que escreveu). Por isso, o gosto pode se transformar à medida que a sensibilidade passa por uma educação, integrando-se a um outro sentido de "social" (por exemplo, um outro grupo social; tenho um primo que começou a ouvir rock tão logo se tornou adolescente).”

-- O gosto pode ser formado socialmente. Gosto é assunto de senso comum. Também pode ser forjado, como diziam os frankfurtianos. Mas olhe só. Quando você fala em educação da sensibilidade, está apontando exatamente para a formação de um gosto que vá além dessa medida. Em meu entendimento, essa educação da sensibilidade pressupõe exatamente a capacidade de olhar para-além de valores ditados socialmente, para-além do mero agrado e desagrado, e avaliar a obra por suas características intrínsecas. Há domínio da técnica? Há superação da técnica? Há originalidade? A obra diz alguma coisa a mim, como ser humano, ou a mim, como existente? Gostar ou não gostar é uma coisa; isto se pode fabricar. Apreciar as qualidades internas de uma obra de arte é outra. Isto demanda conhecimentos específicos de certa modalidade de arte. Mesmo uma obra conceitual como a de Pollock, que desagrada mais que agrada, carrega em si mesma valores que demandam a apreciação como obra para-além do mero gosto pessoal. Mesmo que não goste de Pollock (o que não é absolutamente o caso), posso – ou devo – reconhecer por trás de sua série de números um artista de qualidade (nesse caso, para citar um apenas um aspecto, a impossibilidade de reprodução de sua técnica com os mesmos efeitos – o que já se tentou, sem sucesso).

sofista said...

“Diante desses esclarecimentos, eu posso discutir melhor a sua exigência de que o juízo sobre a arte se prenda à própria obra, e que, assim, considere exclusivamente a universalidade.”

-- Não, não. A universalidade é um critério aristotélico que julgo ser determinante, mas não é o único. Este é um critério que considero perfeitamente válido para medir com alguma exatidão a qualidade de uma obra específica, mas há outros.

“Concordo que o juízo deva se preocupar principalmente com a própria obra, mas não concordo que esse juízo possa remeter a uma universalidade independente das condições em que se dá a realização e a apreciação da obra.”


-- A noção de universalidade já supõe condições independentes da época. Exatamente por isso é um bom critério. Por universalidade eu me refiro à capacidade que tem o artista de, ao falar de si, ou se expressar, dizer de estados de alma (no mínimo) que são suscetíveis de acontecer a qualquer indivíduo em qualquer tempo e em qualquer cultura. O dilema de Hamlet, que é de natureza ética, pode ser vivenciado por qualquer um em qualquer contexto: devo responder à situação x com a atitude A ou a atitude B (não há outra alternativa), mas as conseqüências de A e B são ambas inaceitáveis. Não posso não agir, exceto escolhendo não ser.

sofista said...

“Foi interessante você lembrar de Tropa de Elite. Em um filme que diz respeito tão enfaticamente à realidade brasileira, seria possível um juízo que não fosse atravessado pela relação do espectador com essa realidade? Seria possível julgar a obra a despeito do que é para nós o Brasil, a favela, a violência?”

-- Claro que sim. Julgando a obra como bom cinema a partir da técnica empregada, por exemplo, e não a partir do julgamento que fazemos do Brasil, da favela e da violência. Ou, por outra, podemos julgar que a obra, apesar de falar do Brasil, vai muito além e fala da violência policial, da corrupção, da hipocrisia, da juventude perdida no prazer imediato e incapaz de refletir seriamente sobre as conseqüências de seus atos, da consciência que se apropria de uma racionalidade instrumental, técnica, e vê a si mesma como um sujeito de razão exatamente por ser capaz de se apropriar de um discurso a favor dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que se exclui como objeto de seu próprio discurso, ao julgar que o discurso em si já o insere na defesa destes direitos. Não é isto o que grandes empresas fazem, ao agregar campanhas de ajuda humanitária à venda de seus produtos, mas ao mesmo tempo têm políticas administrativas perversas? Nada disso é “brasileiro” tão somente. É universal.
Mas, é claro, não se trata de defender este filme, e sim a tese original.

sofista said...

“É claro que há muitas coisas que motivam Adorno a condenar os produtos da indústria cultural, e tudo o que escrevo aqui não tem exatamente o objetivo de defender Adorno. Mas eu não sei se é possível questionar a crítica à indústria cultural cobrando uma postura "neutra" do sujeito de juízo. É exatamente porque o valor das obras muda com as épocas (como Shakespeare) que o juízo de uma obra deve se compreender como o de alguém que está localizado em um contexto e que seguiu uma certa trajetória onde se formou como apreciador da arte.”

-- A formação de alguém como apreciador de arte implica, em meu entendimento, exatamente a fuga do contexto. Não interessa quem é o artista, nem em que época viveu. Interessa a obra. Os critérios próprios da cultura mudam, mas se as obras fossem avaliadas somente de acordo com critérios históricos, por que Shakespeare continua sendo o grande autor de língua inglesa? Por que Ulisses, de Joyce, continua sendo um marco da literatura, embora a esmagadora maioria não se atreva a lê-lo? Por várias razões, mas sobretudo pela invenção de um novo modo de narrar uma história.
Interessa menos ainda o apreciador e a que época pertence. Para qualquer época, Joyce inovou. Esta é uma medida que não tem nada a ver com o sujeito que aprecia Ulisses ou nem consegue lê-lo. Pode-se discutir se a medida é boa ou não, mas não se pode alterar o fato de que Joyce inventou uma nova literatura.

sofista said...

Quanto à indústria cultural, é fato que ela produz lixo, que o artista é um operário, que é veículo de ideologias etc etc. Mas meu argumento é que nada disso permite afirmar que ela produz lixo cultural necessariamente e sempre e incondicionalmente. Meu argumento é: julgar a priori que o que a indústria cultural produz é lixo nada mais é que partir da conclusão para as premissas, da tese para o que valida a tese (ignorando o que quer que possa relativizá-la, se for o caso, se isto é possível). Meu problema é com o raciocínio, que me parece invertido. Pode até ser que só saia lixo de uma indústria da cultura, mas pode ser que, ainda que raramente, aconteça de outro modo. Aí é que se coloca a minha afirmação de que épocas vindouras possam vir a olhar de outro modo o que vemos hoje, inseridos que estamos em uma visão de mundo e em valores modernos (de exigência de racionalidade e logicidade, p. ex., cuja ausência pressupõe necessariamente a fuga da identidade etc etc).

sofista said...

“Tentando ser mais direto, o problema em questão é: o que legitima a afirmação de que uma arte é boa ou ruim? A minha resposta é: depende da instância em que o julgador se coloca, sendo que cada instância confere essa legitimidade dentro de seus limites. Mas nenhuma instãncia pode ser isenta de refletir uma concepção de mundo, tanto a que define o sujeito de gosto quanto a que define a própria obra como uma obra de arte (e aí entra, inclusive, a obra como diversão).”

-- Sim, depende da instância em que o julgador se coloca, se a medida é subjetiva. Boa para mim. Não serve para mim, para meu grupo etc. Mas não se o sujeito de gosto olha para a obra e a avalia conforme medidas minimamente objetivas. Eu quero dizer: uma coisa é o gosto; outra bem diferente é a avaliação da obra. As duas podem andar juntas, mas em minha opinião não devem.

sofista said...

Rodrigo, agradeço imensamente suas colocações, muito bem apresentadas, e que me fizeram parar para examinar se posso realmente continuar defendendo minha tese ou se devo abrir mão dela em favor de seus argumentos que, como disse, são muito consistentes e bem elaborados. Refleti, e finquei pé (por enquanto) em minhas considerações anteriores. Se estiver disposto, é de meu interesse continuar essa discussão, principalmente porque discorda de minhas colocações no essencial. Não é importante o consenso; é importante o que podemos extrair da divergência. Então, se estiver disposto, vamos em frente.
Quanto ao comentário sobre Richter, deixarei para depois, mas retornarei a ele, com certeza. É que meu tempo por hoje foi embora. ))

Anonymous said...

Oi Sofista! Vamos em frente, sim, pois o debate está muito interessante! Eu viajei semana passada, e por isso demorei a escrever mais. Desculpe por isso.

Vou tentar organizar a argumentação no ponto em que está. Eu identifico como suas as seguinte teses:

1 - O juízo da arte pode ser sustentado por critérios minimamente objetivos, que correspondem às características internas das

obras e à universalidade possível de ser expressa por elas.

2 - Adorno está equivocado porque duvida que as obras da indústria cultural possam ser boas, quando, na verdade, ele não

julga as obras por elas mesmas, e sim pelo contexto em que elas são produzidas. O problema seria esse "método" de Adorno, que

acaba ignorando o que é essencial na consideração sobre a arte: as próprias obras pelo que elas são.

Sobre a primeira tese, você defendeu que:

As seguintes perguntas remetem às características internas das obras: "Há domínio da técnica? Há superação da técnica? Há

originalidade? A obra diz alguma coisa a mim, como ser humano, ou a mim, como existente?". Joyce seria um exemplo de artista

cuja obra se destaca dentro desses critérios de juízo: ele reiventou a maneira de contar uma história.

Sobre a universalidade, especificamente, você escreve: "Por universalidade eu me refiro à capacidade que tem o artista de, ao

falar de si, ou se expressar, dizer de estados de alma (no mínimo) que são suscetíveis de acontecer a qualquer indivíduo em

qualquer tempo e em qualquer cultura." Hamlet, ao perguntar sobre o ser e não-ser, expressou essa universalidade.

Anonymous said...

Parto de uma discussão dessa primeira tese para depois chegar em Adorno.

O primeiro ponto importante, creio, é que você chama a atenção para a diferença entre gosto e juízo. Enquanto eu digo que um certo "sujeito de juízo" é formado socialmente, você afirma que esse suposto sujeito é, na verdade, o gosto. Aprimorar a sensibilidade estética seria ultrapassar o limite do gosto e ir ao encontro com os critérios objetivos que permitem o juízo.

A minha intenção, indo contra a sua tese, é defender que o juízo, apesar de diferente do gosto, não pode ser objetivo, já que não existem critérios objetivos que possam sustentar um juízo dessa natureza. Assim, o juízo seria aquilo que eu caracterizei antes como uma avaliação da arte que leva em conta a cultura à qual ela pertence; ele certamente está "acima" do gosto, mas não em um lugar tal que o separe do contexto no qual é emitido.

Como não reconheço a existência de critérios objetivos, eu só posso recorrer a uma redução ao absurdo e discutir as perguntas que você apresenta. Nessas perguntas, aparecem os seguintes critérios:

a) Domínio e/ou superação da técnica.
Se a técnica fosse um critério objetivo de juízo, ela deveria dar conta de obras tão diferentes como as esculturas dos gregos e as de Duchamp. Mas é impossível emitir um juízo sobre essas obras a partir da técnica. Cada artista consegue o domínio sobre a técnica que serve à sua obra. É indiferente para Duchamp dominar a técnica dos gregos, posto que suas obras dispensam o artista dessa habilidade. Do mesmo modo, não seria o caso de "superar" uma técnica; Duchamp não vai além da técnica de esculpir formas humanas, ele simplesmente a recusa e opta por lidar de outra maneira com a matéria-prima.

Anonymous said...

b) Originalidade.
Poderíamos salvar Duchamp afirmando que ele é original, e que isso garante à sua obra uma qualidade intrínseca. No entanto, também a originalidade não é um critério objetivo. No sentido que a usamos, trata-se de uma concepção cujas raízes estão na época do romantismo, e que ganha força junto com a separação entre a cultura de massa e a cultura de elite (cf. Raymond Willians, Cultura e Sociedade). Uma obra original não é necessariamente boa. Eu poderia virar de cabeça pra baixo a roda de uma bicicleta e dizer que isso é arte no século XII. Seria original. Mas nada disso me faria artista, nem faria da roda de bicicleta uma obra de arte; seria necessário esperar o momento em que o conceitualismo fizesse sentido dentro da nossa trajetória artística para realizar o que Duchamp realizou.

Nesse ponto, me lembro do seu argumento de que podemos voltar ao passado e reconsiderar o valor de um artista - o que aconteceu com Shakespeare, por exemplo. Ok, podemos fazê-lo, mas isso não isenta essa mudança de juízo de ser vinculada a certos critérios que só surgiram na época em que a reavaliação foi realizada. Se Shakespeare era um artista póstumo, isso quer dizer que esse artista foi capaz de se tornar uma referência, mas não garante que a posteridade que o celebra tenha a posse de um juízo objetivo.

c) A obra deve dizer algo sobre o humano ou o existente.
Nesse tópico chega a universalidade. Concordo com você que o dilema de Shakespeare não é limitado a contextos; ele é um dilema para qualquer um em qualquer tempo. Mas essa universalidade não indica uma propriedade da obra, e sim um problema que ultrapassa a arte. Não é exatamente um critério de juízo. Eu poderia me referir ao mesmo dilema de Hamlet em uma música popular de péssima melodia, inclusive cantando fora do tom. De certo modo, o dilema é mais conteúdo do que forma. Creio que a forma está sempre relacionada ao conteúdo, mas no sentido de determinar uma maneira particular de apresentar o universal, e não como uma condição de possibilidade dele.

Anonymous said...

Retornando à minha tese, penso que o juízo, diferente do gosto, é possível como uma avaliação da arte que leva em conta as relações nas quais a obra está imersa, mas não há objetividade, já que essas relações são contextuais, históricas, ou simplesmente circunscritas em uma idéia particular da arte. Se afirmo que Tropa de Elite é um bom filme, eu estou afirmando uma concepção de cinema dentro da qual esse filme faz sentido como 'filme bom"; fora dessa concepção, não há nada a dizer. Eu não poderia julgar Tropa de Elite com os mesmos critérios que uso para Hans Richter.

Enfim, Adorno podia não estar equivocado ao contestar a qualidade das obras da indústria cultural. Só pode estar equivocado se toda a sua crítica do mundo contemporâneo também estiver. Ele diz, no trecho que você citou: "Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress". Pois bem, uma experiência concentrada e consciente tem implícita uma concepção da arte. Adorno apenas toma partido: ele quer outros critérios, tanto quanto quer uma outra sociedade, uma nova relação nossa com o esclarecimento. Tu não achas?

Um abraço!
Rodrigo.

sofista said...

Rodrigo, respondo a seus comentários amanhã, 28,06. Estou um tantinho atarefada, mas responderei. A propósito, vou jogar essa discussão para os comentários do último post, tá? Prá facilitar nossa vida. :-)))