Tuesday, December 16, 2008

John Gray e a Al-Qaeda (1)

Junto com Peter Singer, John Gray é um dos filósofos que mais tenho apreciado ultimamente.

Nada a ver com o escritor de livrinhos de auto-ajuda, tá? Aquele de "Mulheres são de Vênus e etc". Estou me referindo ao filósofo britânico autor de "Cachorros de Palha".

Então. Li recentemente "Al-Qaeda e o que significa ser moderno". Apesar de ser um tanto repetitivo, para quem já tinha lido "Cachorros de Palha", este livro é um achado. Assim como Peter Singer em "Um só mundo: a ética da globalização", John Gray trabalha insistentemente com a idéia de unidade. Para rebatê-la.

A premissa básica é que a Al-Qaeda não é medieval, como muitos gostam de pensar. Não se trata, no entendimento de Gray, de uma mentalidade bárbara, ultrapassada, que insiste em lutar contra a civilização e a modernidade. É difícil não pensar assim, quando Osama mais parece um ícone vivo do estilo de vida e da visão de mundo de um beduíno autêntico, ou a desastrosa reencarnação daquele velhinho da montanha, do século XII, que ordenava a seus homens que pulassem da montanha para a morte simplesmente para provar que tinha poder. Mas John Gray tem razão.

Para ele, a Al-Qaeda é tão moderna em seus princípios e métodos quanto o nazismo e o comunismo. Todos eles queriam (ou querem) reformar o mundo com base na idéia de que é preciso salvar o homem, e que só é possível fazê-lo pela unidade de discurso.

Nossa herança positivista nos faz acreditar que só há um modo de ser "moderno". Gray mostra que há outros modos, mas que todos eles trazem em seu bojo o desejo de um mundo melhor e de um homem melhor que só pode ser obtido pela eliminação da diferença.

O livro é claro, bem escrito e bem fundamentado. Vale a pena ler.

15 comments:

Anonymous said...

"Para ele, a Al Qaeda é tão moderna em seus princípios e métodos quanto o nazismo e o comunismo. Todos eles queriam (ou querem) reformar o mundo com base na idéia de que é preciso salvar o homem, e que só é possível fazê-lo pela unidade de discurso."

Isso não acaba aproximando todos esses levantes modernos (comunismo, nazismo, Al Qaeda) da essência do cristianismo, e, assim, de algo que está também na idade média? Uma mudança de aspecto ocorreria com a revolução burguesa, mas ela não seria uma ruptura, a rigor.

Na idade média, temos a estabilidade de um mundo teocêntrico, no qual a diferença está ausente. Logo, não existe luta efetiva contra ela; não há contato sério com o outro.

Depois, no período moderno, temos um mundo de dispersão e muitas diferenças; estas devem ser eliminadas, na ótica de uma coletividades que pretende ser melhor e universal (antes ainda do positivismo, esse é o espírito iluminista).

Nesse sentido, não é de espantar que o cristianismo continuou no ocidente, no percalço das conquistas marítimas, por exemplo. Sem perder a sua essência medieval, ele serviu muito bem como suporte ideológico das guerras contra os nativos.

E também não é de espantar que, hoje, as formas mais intolerantes da espiritualidade ocidental derivam desse mesmo tronco: as religiões neopentecostais, que separam a tudo e a todos em céu e inferno, sempre em nome do bem e da salvação do homem.

Logo, em certo sentido, a Al Qaeda é mesmo medieval. E nós, aqui do ocidente, também. O que você acha?

sofista said...

Oi Rodrigo!

"Isso não acaba aproximando todos esses levantes modernos (comunismo, nazismo, Al Qaeda) da essência do cristianismo..."

Sim, se entendi Gray, a idéia passa por aí. O positivismo é um filho bastardo do cristianismo, assim como o comunismo, o nazismo e a política Bush. Todos eles querem salvar o homem.

"...e, assim, de algo que está também na idade média?"

Aqui há um problema. A modernidade se define pelo cientificismo, por isso Al Qaeda é parente do positivismo, e não medieval. O que Gray defende é que a Al Qaeda é fruto da modernidade em seus métodos. Não há nada de medieval no terrorismo. Não se trata de um inimigo que se possa identificar, não há nada de medieval no uso da tecnologia, etc.

sofista said...

"Na idade média, temos a estabilidade de um mundo teocêntrico, no qual a diferença está ausente. Logo, não existe luta efetiva contra ela; não há contato sério com o outro."

Não sei não. A diferença era anulada pela violência. Mas unidade mesmo não havia, ou não haveria necessidade de repressão.

sofista said...

"Depois, no período moderno, temos um mundo de dispersão e muitas diferenças; estas devem ser eliminadas, na ótica de uma coletividades que pretende ser melhor e universal (antes ainda do positivismo, esse é o espírito iluminista)."

A modernidade é iluminista, e o iluminismo é positivista (muito antes de Saint Simon e Comte, inclusive). Que ela traga um ranço do medievo, é certo, mas o que se quer aqui é a unidade na razão.

sofista said...

"Logo, em certo sentido, a Al Qaeda é mesmo medieval. E nós, aqui do ocidente, também. O que você acha?"

Sim, sem dúvida. Mas a tese de Gray, se entendi bem, é uma espécie de imagem invertida do que você afirma acima: ele não nos leva para a Idade Média. Ao contrário, traz a Al Qaeda para o Ocidente e para a modernidade. No fundo, acho que dá tudo na mesma, mas o ataque de Gray é contra esta separação que fazemos entre civilização e barbárie. Nós somos a civilização. Ele diz, em algum momento do livro, que só podemos esperar alguma melhora nas relações internacionais quando abandonarmos a idéia de unidade.

Anonymous said...

"Não sei não. A diferença era anulada pela violência. Mas unidade mesmo não havia, ou não haveria necessidade de repressão."

É verdade. Pensei numa unidade determinada pelas relações econômicas e sociais medievais, que concentravam o ocidente em si mesmo. O mundo feudal teria começado a ruir com o crescimento do comércio, das trocas com o oriente. Mas essa unidade não necessariamente implica a inexistência de um "outro". Esse outro pode ser interno. Pode ser as bruxas perseguidas, como o seu post anterior lembra bem.

Li uma entrevista do John Gray na internet. Ele me pareceu muito, digamos, "catastrófico" (a tese de "Cachorros de palha"). Faz críticas a Nietzsche e Heidegger, ao que parece.

E seria justamente no sentido de um Nietzsche a minha observação anterior. O que permite a Nietzsche aproximar Platão, a moral cristã e o iluminismo? Ele faz isso em função de uma crítica da civilização que pode se desdobrar à Al Qaeda e ao mundo contemporâneo, na medida em que persistem os idealismos e ideais de homem.

Mas, bem, eu não li o autor. Chega de especular no escuro, rs.
Abraço!

sofista said...

Talvez eu esteja simplificando o autor. O que ele diz até pode ser óbvio depois que é dito, mas a visão é original, fundamentada inclusive com uma boa análise do positivismo desde Saint Simon, associando-o com os situacionistas e com uma perspectiva religiosa de fundo.

Então, acabamos voltando ao Cristianismo. A era Bush e a pax americana, tratada por Gray no último capítulo, são reflexo dessa visão de mundo. No fundo, acho que o pensamento mítico é a coisa mais difícil de se superar. E a pretensão à unidade é um pensamento de ordem mítica.

sofista said...

O romantismo é a expressão mais clara desse pensamento mítico, e é o filhinho preferido do Cristianismo.
Acontece que o romantismo está na política, na filosofia, na literatura, nas artes, no nazismo, no comunismo.

Bem, já me afastei de Gray. O que disse acima é uma opinião pessoal.

Anonymous said...

"A modernidade é iluminista, e o iluminismo é positivista (muito antes de Saint Simon e Comte, inclusive). Que ela traga um ranço do medievo, é certo, mas o que se quer aqui é a unidade na razão."

Ok, pelo menos esse era o projeto. Mas a "unidade na razão" não dispensou as dicotomias. Aliás, a razão definiu muito bem os seus "outros" (como a loucura, na pesquisa de Foucault). Nesse passo, chegamos a inventar outros aparatos para substituir Deus, como a indústria cultural. A despeito disso, não perdemos a essência clássica (platônica/cristã) que segue motivando grupos como a Al Qaeda e todo tipo de terrorismo, inclusive o americano, e que o próprio Gray apontou (se entendi bem).

A única certeza, enfim, é que ele entrou pra lista de livros do meu interesse. :)

sofista said...

Oi Rodrigo!

"O que permite a Nietzsche aproximar Platão, a moral cristã e o iluminismo?"

O romantismo. Acho eu. :-))

É claro que o romantismo de Platão é avant la lettre, mas é romantismo.

Quanto a "Cachorros de Palha", não tive essa impressão não. Gostei dele porque é lúcido, anti-moralista, anti-cristão e anti-comunista. :-0)))

Anonymous said...

"No fundo, acho que o pensamento mítico é a coisa mais difícil de se superar. E a pretensão à unidade é um pensamento de ordem mítica."

Mas o salto não seria grande demais? Uma coisa é a unidade mítica, outra é a que nasce junto com o impulso racional da filosofia. Outra, ainda, é a que desponta no projeto moderno.

Seguindo o que você disse, não correríamos o risco de prender a civilização ocidental à matriz grega, como se apenas fosse possível fugir do nosso destino se perdêssemos o contato com a nossa origem?

Anonymous said...

"É claro que o romantismo de Platão é avant la lettre, mas é romantismo."

hehehe

sofista said...

Oi Rodrigo!

"Mas o salto não seria grande demais? Uma coisa é a unidade mítica, outra é a que nasce junto com o impulso racional da filosofia. Outra, ainda, é a que desponta no projeto moderno."

Sim, são coisas diferentes, mas penso que todo desejo por unidade é, por excelência, totalitário. Mesmo o projeto filosófico de busca do universal carrega pelo menos o desejo de fechamento semântico. Isso pode ser necessario, sob certos aspectos, mas não deixa de ser totalitário.

"Seguindo o que você disse, não correríamos o risco de prender a civilização ocidental à matriz grega, como se apenas fosse possível fugir do nosso destino se perdêssemos o contato com a nossa origem?"

Não sei se entendi muito bem, mas penso que estamos sim presos à matriz grega. Quanto à origem, o apego a ela não é necessariamente algo bom. Esta avaliação - se é bom ou não o contato com as origens - depende desta origem. Eu quero dizer, os erros não devem ser perpetuados, ainda que tenham se mantido ao longo da história.

Anonymous said...

Se você fala da superação de um impulso que está tanto no mito quanto na filosofia, esse impulso à unidade, que redunda no totalitarismo, a matriz grega é uma referência poderosa. Tão mais poderosa quanto mais foi atualizada pela filosofia que representa a "tradição" ocidental (passamos, assim, pelo iluminismo e o positivismo, as formas de racionalismo que compõem o moderno).

Vejo aqui a sua preocupação em resgatar a sofística. Algo que está também em Michel Onfray, por exemplo, quando se propõe a reescrever a história da filosofia, atentando para os filósofos que ficaram à margem na trajetória da "tradição". Tradição, claro, que é uma narrativa, uma construção hegemônica, e jamais absoluta.

Nesse passo, interessam os filósofos de um pensamento não totalitário. Aqueles que formulam um pensamento à deriva do racionalismo, escapando, inclusive, do que há de totalitário no mito. Assim, eu concordo que a matriz grega é como você diz. Ela também não é monolítica, dependendo do nosso olhar sobre ela.

Feliz ano novo!!

sofista said...

Oi Rodrigo!

É verdade, a razão grega, por assim dizer, não é monolítica. Quanto falo dos gregos, estou pensando particularmente em Platão, mas o mundo grego vai bem além, e frequentemente eu me esqueço disso.

É que Pratão me absorve. :-)))

A idéia de unidade de sentido é problemática, mas sem ela, já dizia Parmênides, não dá nem prá pensar. :-)))

Feliz Ano Novo prá você também.