Tuesday, December 23, 2008

John Gray e a Al-Qaeda (2)

"O que a al-Qaeda destruiu

Os guerreiros suicidas que atacaram Washington e Nova York em 11 de setembro de 2001 fizeram mais do que matar milhares de civis e demolir o World Trade Center. Eles destruíram o mito dominador do Ocidente.

As sociedades ocidentais são dominadas pela crença de que a modernidade é uma condição única, por toda parte a mesma e sempre benigna. À medida que as sociedades se tornam mais modernas, ficam mais parecidas. Ao mesmo tempo, tornam-se melhores. Ser moderno significa realizar nossos valores — os valores do Iluminismo, como gostamos de pensar.

Nenhum lugar-comum é mais espantoso do que o que descreve a al-Qaeda como uma revivescência da época medieval. Ela é um subproduto da globalização. Assim como os cartéis mundiais das drogas e as grandes empresas de comércio virtual que se desenvolveram nos anos 1990, evoluiu numa época em que a desregulamentação financeira criou grandes reservatórios de riqueza no estrangeiro e o crime organizado tornou-se global. Sua característica mais distintiva — planejar uma forma privatizada de violência organizada no mundo inteiro — seria impossível no passado. Do mesmo modo, a crença de que um mundo novo pode ser apressado por atos espetaculares de destruição não se encontra em parte alguma na época medieval. Os precursores mais próximos da al-Qaeda são os anarquistas revolucionários da Europa do final do século XIX.

Quem duvidar que o terror revolucionário é uma invenção moderna resolveu esquecer a história recente. A União Soviética foi uma tentativa de corporificar o ideal iluminista de um mundo sem poder nem conflitos. Em busca deste ideal, matou e escravizou dezenas de milhões de seres humanos. A Alemanha nazista cometeu o pior ato de genocídio da história. E o fez com a meta de criar um novo tipo de ser humano. Nenhuma era anterior abrigou projetos assim. As câmaras de gás e os gulags são modernos.

(...)
Sempre houve desacordo sobre a natureza deste mundo novo. Para Marx e Lenin, seria uma anarquia igualitária e sem classes; para Fukuyama e os neoliberais, um livre-mercado universal. Tais visões de um futuro alicerçado na ciência são muito diferentes; mas de forma alguma isso enfraqueceu o domínio da fé que expressam.
Por meio de sua influência profunda sobre Marx, as idéias positivistas inspiraram a desastrosa experiência soviética de planejamento econômico centralizado. Quando o sistema soviético entrou em colapso, elas ressurgiram no culto do livre-mercado. Passou-se a acreditar que apenas o “capitalismo democrático” de estilo norte-americano é verdadeiramente moderno e que se destina a espalhar-se por toda parte. Quando isso acontecer passará a existir uma civilização universal e a história chegará ao fim.

Isso pode parecer um credo fantástico, e é. O mais fantástico é ainda ter o crédito de muita gente. Configura os programas dos principais partidos políticos de todo o mundo. Guia as políticas de instituições como o Fundo Monetário Internacional. Anima a “guerra ao terror”, na qual a al-Qaeda é vista como relíquia do passado.
Esta visão é, simplesmente, errada. Como o comunismo e o nazismo, o islamismo radical é moderno. Embora alegue ser antiocidental, é configurado tanto pela ideologia do Ocidente quanto pelas tradições islâmicas. Como os marxistas e os neoliberais, os islamitas radicais vêem a história como o prelúdio de um mundo novo. Todos estão convencidos de que podem refazer a condição humana. Se há um mito exclusivamente moderno, é esse."

(...)

-----

GRAY, John. Al-Qaeda e o que significa ser moderno. Rio : Record, 2004.

5 comments:

Anonymous said...

Muito bom mesmo!

Destaque para: "(...) a crença de que um mundo novo pode ser apressado por atos espetaculares de destruição não se encontra em parte alguma na época medieval".

Ajustando a minha perspectiva: se já havia uma "vocação" ao ideal e ao perfeito em Platão e no cristianismo, ela é bastante diferente do que ocorre na modernidade, que vê a morte de deus e um investimento muito grande no homem (positivismo, ilunismo, antropocentrismo, ciência positiva, enfim). Isso é visível na própria estabilidade do mundo medieval, que não vê no corpo coletivo nenhuma missão para além da conservação da vida e da ordem segundo as égides do poder cristão.

Al Qaeda é moderna, como não poderia deixar de ser.

Os ideólogos do Bush devem odiar esse Gray. rs

Anonymous said...

É difícil não concordar com Gray. Mas, fiquei intrigado com o seguinte: "Passou-se a acreditar que apenas o “capitalismo democrático” de estilo norte-americano é verdadeiramente moderno e que se destina a espalhar-se por toda parte. Quando isso acontecer passará a existir uma civilização universal e a história chegará ao fim ".

O que ele quis dizer com essa última frase?

Unknown said...

(Complemento)

Mas, continuando a intriga... Essa estabilidade medieval, de que falo, é mais ideológica que bélica, pois, de fato, a idade média teve o seu contato ríspido com o "outro" - os muçulmanos, os pagãos, as Cruzadas, enfim. Se não havia o ideal revolucionário, tipicamente moderno, tivemos guerras que, pelo próprio caráter da religião cristã, tinham um fundo de universalidade, de "salvação do humano" e de construção de um mundo melhor. Ou não é?

Como não perceber, tanto na Al Qaeda quanto na "cruzada" de Bush (lembra do trocadilho/gafe do presidente?) o mesmo espírito dessa defesa/expansão do cristianismo no medievo?

É claro que isso não resolve tudo. A Al Qaeda não é medieval porque isso é completamente impossível. São séculos de distância. Contudo, ao afirmar tão enfaticamente algo que, em princípio, é óbvio, Gray não estaria deixando de lado uma série de elementos que estão conectados ainda mais remotamente (e profundamente) na história da civilização?

De novo, voltaríamos ao bem/mal platônico-cristão. Ou, quiçá, a Parmênides, com a sua unidade de pensamento.

Parmênides, um Bin Laden? rs

sofista said...

oi Tilhio!

Isso que Gray diz é bastante hegeliano em sua essência: existe um modelo de estado ideal, democrático, de pessoas livres e iguais, que "se fez carne" no modelo alemão de Estado da época de Hegel. A missão do povo alemão seria, portanto, espalhar a boa nova. A convicção dos americanos de que concretizaram um modelo ideal de Estado os faz entender que este modelo é expressão da vida moderna, civilizada, ordenada, de pessoas livres e iguais, em contraste com os regimes de outrora, autocráticos, brutais e sem respeito pela humanidade. Assim, se avançamos a ponto de concretizar esse ideal, a missão que temos agora é de espalhar essa boa nova. Quando todos os Estados forem americanizados - no sentido descrito acima - a história terá chegado ao seu fim, porque alcançamos o paraíso na terra.
No fim das contas, é o positivismo que está por trás desta visão.

sofista said...

Oi Rodrigo!

Estou tentando voltar ao brogue, mas é difícil saber que tempo terei até terminar essa encrenca do doutorado.

Mas vamos lá. A Al-Qaeda seria considerada medieval pelo espírito de barbárie, de desrespeito pelos direitos humanos, característica da dita modernidade. E é também pelo espírito que Gray a situa no centro da modernidade: ela seria fruto do mesmo desejo de salvar a humanidade, embora com convicções próprias sobre o que é ser um ser humano. Gray entende que nos métodos a Al-Qaeda também é moderna: quer salvar pela violência, pela anulação do outro. O espírito medieval é de desprezo pelo homem, na aceitação do além-do-homem. Não se quer salvar a humanidade; quer-se salvar o divino.