Tuesday, March 06, 2007

Jean Baudrillard

Morreu hoje, 06.03.07, o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard, autor de "Signos", "América, "A Transparência do Mal", "A alucinação coletiva do virtual", "A conjuração de imbecis", "Simulação e Simulacro", "Da sedução", "À sombra das maiorias silenciosas", "Contra Foucault" e outros. Boa leitura, mas não exatamente fácil. A proximidade com Kierkegaard é grande.

Vá pela sombra, Jean.

Eis um trecho de "A transparência do Mal", que já citei aqui uma vez:

Se fosse caracterizar o atual estado de coisas, eu diria é o da pós-orgia. A orgia é o momento explosivo da Modernidade, o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, liberação da arte. Assunção de todos os modelos de representação e de todos os modelos de anti-representação. Total orgia de real, de racional, de sexual, de crítica e de anticrítica, de crescimento e de crise de crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. Hoje, tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER DEPOIS DA ORGIA?

Só podemos agora simular a orgia e a liberação, fingir que prosseguimos acelerando, mas na realidade aceleramos no vácuo, porque todas as finalidades da liberação já ficaram para trás, e o que nos preocupa, o que nos atormenta é essa antecipação de todos os resultados, a disponibilidade de todos os signos, de todas as formas, de todos os desejos. Que fazer então? Isso é o estado de simulação, aquele em que só podemos repetir todas as cenas porque elas já aconteceram — real ou virtualmente. É o estado da utopia realizada, de todas as utopias realizadas, em que é preciso paradoxalmente continuar a viver como se elas não o estivessem. Mas, já que o estão e já que não podemos ter a esperança de realizá-las, só nos resta hiper-realizá-las numa simulação indefinida. Vivemos na reprodução indefinida de ideais, de fantasmas, de imagens, de sonhos que doravante ficaram para trás e que, no entanto, devemos reproduzir numa espécie de indiferença fatal. No fundo, a revolução já aconteceu em toda a parte, mas não do modo como se esperava. Em toda a parte, o que foi liberado o foi para passar à pura circulação, para entrar em órbita. Com certo recuo, pode-se dizer que o fim inelutável de toda a liberação é fomentar e alimentar as redes. As coisas liberadas são fadadas à comutação incessante e, portanto, à indeterminação crescente e ao princípio de incerteza.

Nada mais (nem mesmo Deus) desaparece pelo fim ou pela morte mas por proliferação, contaminação, saturação e transparência, exaustão e exterminação, por epidemia de simulação, transferência na existência segunda da simulação. Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim um modo fractal de dispersão. Nada mais se reflete de fato, nem em espelho, nem em abismo (que nada mais é que o desdobramento infinito da consciência). A lógica da dispersão viral das redes já não é a do valor nem a da equivalência. Já não há revolução, mas circunvolução, uma involução do valor. Ao mesmo tempo, uma compulsão centrípeta bem como uma excentricidade de todos os sistemas, uma metástase interna, uma autovirulência febril que os leva a explodir além de seus próprios limites, a ultrapassar a própria lógica, não na pura tautologia mas num aumento de força, numa potencialização fantástica em que eles arriscam a própria perda.

Todas essas peripécias nos fazem retornar ao destino do valor. Eu havia invocado outrora, num obscuro intento de classificação, uma trilogia do valor. Um estádio natural do valor de uso, um estádio mercantil do valor de troca, um estádio estrutural do valor-signo. Uma lei natural, uma lei mercantil, uma lei estrutural do valor. É claro que essas distinções são formais, mas é como os físicos que inventam cada mês uma nova partícula. Uma não expulsa a outra: elas sucedem-se e adicionam-se numa trajetória hipotética. Vou, portanto, aqui acrescentar uma nova partícula à micro-física dos simulacros. Depois do estádio natural, do estádio mercantil, do estádio estrutural, eis que chega o estádio fractal do valor. Ao primeiro correspondia um referente natural, e o valor desenvolvia-se em relação com um uso natural do mundo. Ao segundo correspondia um equivalente geral, e o valor desenvolvia-se em referência a uma lógica da mercadoria. Ao terceiro corresponde um código, e o valor aí se desenvolve em referência a um conjunto de modelos. No quarto estádio, o estádio fractal, ou estádio viral, ou ainda estádio irradiado do valor, já não há nenhuma referência: o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios, sem referência ao que quer que seja, por pura contigüidade. No estádio fractal, já não há equivalência, nem natural nem geral, nem há lei do valor, de proliferação e de dispersão aleatória. Em rigor, já não se deveria falar de valor, já que essa espécie de mulipicação e de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação. Mais uma vez é como na microfísica: é tão impossível calcular em termos de belo ou feio, de verdadeiro ou falso, de bem ou mal, quanto calcular ao mesmo tempo a velocidade e a posição de uma partícula. O bem já não é perpendicular ao mal, nada mais se coloca em abscissas e ordenadas. Cada partícula segue seu próprio movimento, cada valor ou fragmento de valor brilha por um instante no firmamento da simulação para desaparecer no vácuo, segundo uma linha quebrada que só excepcionalmente encontra a dos outros. É o esquema peculiar ao fractal; é o esquema atual de nossa cultura.

Quando as coisas, os signos, as ações são libertadas de sua idéia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a idéia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda.

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