Friday, June 06, 2008

Ode à preguiça

Sabemos que boa parte das fábulas infantis são gregas. Muitas são inspiradas em Esopo, especialmente as que têm animais falantes. Outra parte é inspirada nas histórias da mitologia (Eros e Psyché, p. ex., virou A bela e a fera).

Mas, olha que gracinha, Platão quase conta, no Fedro (259c), a história da cigarra e da formiga:

"Diz-se que outrora, antes do nascimento das Musas, as cigarras eram homens. Mas, quando as Musas surgiram e apareceu o canto, alguns dos homens dessa época sentiram-se de tal maneira arrebatados pelo prazer da música que, à força de cantar, descuidaram o alimento e a bebida e morreram sem dar por isso. Deles nasce, então, a raça das cigarras... Por muitas razões, portanto, devemos conversar, e não dormir, na hora do meio-dia".

A hora do meio-dia aqui, é claro, refere-se à idade adulta, entre a manhã (infância) e a tarde (velhice).

Então.

21 comments:

sofista said...

Dando seguimento à discussão iniciada no post "Diversão não":

Rodrigo escreveu:

Oi Sofista! Vamos em frente, sim, pois o debate está muito interessante! Eu viajei semana passada, e por isso demorei a escrever mais. Desculpe por isso.

Vou tentar organizar a argumentação no ponto em que está. Eu identifico como suas as seguinte teses:

1 - O juízo da arte pode ser sustentado por critérios minimamente objetivos, que correspondem às características internas das obras e à universalidade possível de ser expressa por elas.

2 - Adorno está equivocado porque duvida que as obras da indústria cultural possam ser boas, quando, na verdade, ele não julga as obras por elas mesmas, e sim pelo contexto em que elas são produzidas. O problema seria esse "método" de Adorno, que acaba ignorando o que é essencial na consideração sobre a arte: as próprias obras pelo que elas são.

Sobre a primeira tese, você defendeu que:

As seguintes perguntas remetem às características internas das obras: "Há domínio da técnica? Há superação da técnica? Há originalidade? A obra diz alguma coisa a mim, como ser humano, ou a mim, como existente?". Joyce seria um exemplo de artista cuja obra se destaca dentro desses critérios de juízo: ele reiventou a maneira de contar uma história.

Sobre a universalidade, especificamente, você escreve: "Por universalidade eu me refiro à capacidade que tem o artista de, ao
falar de si, ou se expressar, dizer de estados de alma (no mínimo) que são suscetíveis de acontecer a qualquer indivíduo em qualquer tempo e em qualquer cultura." Hamlet, ao perguntar sobre o ser e não-ser, expressou essa universalidade.

sofista said...

Oi Rodrigo, sobre esta parte, inteiramente de acordo. As teses são estas.

sofista said...

Rodrigo escreveu:

Parto de uma discussão dessa primeira tese para depois chegar em Adorno.

O primeiro ponto importante, creio, é que você chama a atenção para a diferença entre gosto e juízo. Enquanto eu digo que um certo "sujeito de juízo" é formado socialmente, você afirma que esse suposto sujeito é, na verdade, o gosto. Aprimorar a sensibilidade estética seria ultrapassar o limite do gosto e ir ao encontro com os critérios objetivos que permitem o juízo.

A minha intenção, indo contra a sua tese, é defender que o juízo, apesar de diferente do gosto, não pode ser objetivo, já que não existem critérios objetivos que possam sustentar um juízo dessa natureza. Assim, o juízo seria aquilo que eu caracterizei antes como uma avaliação da arte que leva em conta a cultura à qual ela pertence; ele certamente está "acima" do gosto, mas não em um lugar tal que o separe do contexto no qual é emitido.

Como não reconheço a existência de critérios objetivos, eu só posso recorrer a uma redução ao absurdo e discutir as perguntas que você apresenta. Nessas perguntas, aparecem os seguintes critérios:

a) Domínio e/ou superação da técnica.
Se a técnica fosse um critério objetivo de juízo, ela deveria dar conta de obras tão diferentes como as esculturas dos gregos e as de Duchamp. Mas é impossível emitir um juízo sobre essas obras a partir da técnica. Cada artista consegue o domínio sobre a técnica que serve à sua obra. É indiferente para Duchamp dominar a técnica dos gregos, posto que suas obras dispensam o artista dessa habilidade. Do mesmo modo, não seria o caso de "superar" uma técnica; Duchamp não vai além da técnica de esculpir formas humanas, ele simplesmente a recusa e opta por lidar de outra maneira com a matéria-prima.

sofista said...

Oi Rodrigo,

Concordo que o gosto é inteiramente subjetivo, mas discordo que o juízo seja do mesmo modo. É claro que o juízo é subjetivo naquilo em que depende do gosto, mas discordo inteiramente de sua afirmação de que ele dependa de critérios históricos. Pode, sim, basear-se neles, pode ser subjetivo sim, mas meu ponto é que não deve ser, porque há meios de avaliar uma obra de arte segundo critérios que estejam muito mais relacionados com valores atribuídos à arte que com o mero gosto pessoal. Você pode argumentar que estes valores são subjetivos. Não penso assim. Na medida em que são a-históricos, que valem para-além de sua época, já têm uma medida objetiva.

Também não me refiro, ao falar em objetividade, ao mesmo conceito na ciência, p. ex., mas no seu sentido mais puro: os critérios dizem respeito ao sujeito ou ao objeto? Ao objeto. Técnica não diz respeito a quem avalia, mas ao objeto avaliado.

Bem, quanto à sua observação sobre a técnica: ela é apenas um "como fazer", que não é a mesma para qualquer modalidade de arte e não a mesma para qualquer obra de arte. A técnica empregada por um Duchamp pode ser criação dele, e o diferencia de um Picasso ou um Escher. Ainda assim é técnica, como é a de Pollock, pura invenção dele (até onde posso dizer), e no entanto é uma técnica, que não é nem melhor nem pior que qualquer outra. A princípio.

sofista said...

Continuando,

Então o critério continua objetivo, embora tenha de ser aplicado in abstrato, e não in concreto.

A técnica empregada por Duchamp é, concordo, indiferente à dos gregos, e indiferente à dos renascentistas. Mas a obra de Duchamp tem de ser avaliada em si mesma, e não em comparação com outra, de outra época, ou de sua época. Isto, a meu ver, é objetividade na avaliação, e não subjetividade.

sofista said...

Rodrigo escreveu:

b) Originalidade.
Poderíamos salvar Duchamp afirmando que ele é original, e que isso garante à sua obra uma qualidade intrínseca. No entanto, também a originalidade não é um critério objetivo. No sentido que a usamos, trata-se de uma concepção cujas raízes estão na época do romantismo, e que ganha força junto com a separação entre a cultura de massa e a cultura de elite (cf. Raymond Willians, Cultura e Sociedade). Uma obra original não é necessariamente boa. Eu poderia virar de cabeça pra baixo a roda de uma bicicleta e dizer que isso é arte no século XII. Seria original. Mas nada disso me faria artista, nem faria da roda de bicicleta uma obra de arte; seria necessário esperar o momento em que o conceitualismo fizesse sentido dentro da nossa trajetória artística para realizar o que Duchamp realizou.

Nesse ponto, me lembro do seu argumento de que podemos voltar ao passado e reconsiderar o valor de um artista - o que aconteceu com Shakespeare, por exemplo. Ok, podemos fazê-lo, mas isso não isenta essa mudança de juízo de ser vinculada a certos critérios que só surgiram na época em que a reavaliação foi realizada. Se Shakespeare era um artista póstumo, isso quer dizer que esse artista foi capaz de se tornar uma referência, mas não garante que a posteridade que o celebra tenha a posse de um juízo objetivo.

c) A obra deve dizer algo sobre o humano ou o existente.
Nesse tópico chega a universalidade. Concordo com você que o dilema de Shakespeare não é limitado a contextos; ele é um dilema para qualquer um em qualquer tempo. Mas essa universalidade não indica uma propriedade da obra, e sim um problema que ultrapassa a arte. Não é exatamente um critério de juízo. Eu poderia me referir ao mesmo dilema de Hamlet em uma música popular de péssima melodia, inclusive cantando fora do tom. De certo modo, o dilema é mais conteúdo do que forma. Creio que a forma está sempre relacionada ao conteúdo, mas no sentido de determinar uma maneira particular de apresentar o universal, e não como uma condição de possibilidade dele.
Retornando à minha tese, penso que o juízo, diferente do gosto, é possível como uma avaliação da arte que leva em conta as relações nas quais a obra está imersa, mas não há objetividade, já que essas relações são contextuais, históricas, ou simplesmente circunscritas em uma idéia particular da arte. Se afirmo que Tropa de Elite é um bom filme, eu estou afirmando uma concepção de cinema dentro da qual esse filme faz sentido como 'filme bom"; fora dessa concepção, não há nada a dizer. Eu não poderia julgar Tropa de Elite com os mesmos critérios que uso para Hans Richter.

Enfim, Adorno podia não estar equivocado ao contestar a qualidade das obras da indústria cultural. Só pode estar equivocado se toda a sua crítica do mundo contemporâneo também estiver. Ele diz, no trecho que você citou: "Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress". Pois bem, uma experiência concentrada e consciente tem implícita uma concepção da arte. Adorno apenas toma partido: ele quer outros critérios, tanto quanto quer uma outra sociedade, uma nova relação nossa com o esclarecimento. Tu não achas?

Um abraço!
Rodrigo.

sofista said...

Oi Rodrigo,

Faço duas observações quanto à originalidade como critério:

1. O fato de ser um critério que surgiu em uma época não o torna, só por isso, subjetivo. Qualquer critério é dependente de contexto, e surge a partir de valores situados historicamente. Mas quando ele é utilizado no momento da avaliação, não é sua origem histórica que conta, mas sim se ele diz respeito à obra ou ao sujeito que avalia, ou à época em que foi criado. E para mim ele diz respeito à obra.
2. A originalidade é um critério para avaliar obra de arte, mas obviamente não serve apenas a esta finalidade. Nem tudo que é original é, por isso mesmo, arte; nem toda boa arte é necessariamente original. É apenas um critério entre outros, mas o ponto-chave é: quando reconhecemos em uma obra de arte sua originalidade, estamos avaliando o objeto - a obra - por algo que está nela (ou lhe falta), ou estamos apenas expressando o mero gosto? Em minha opinião, estamos avaliando a obra por suas qualidades intrínsecas, que nos permitem argumentar a favor ou contra o objeto avaliado. Justamente porque podemos argumentar para-além da expressão do gosto estamos adotando critérios objetivos de análise.

sofista said...

Rodrigo,

Quanto à universalidade, também vou discordar. :-))) É isto é ótimo, porque assim vamos em frente.

Acredito que a univesalidade seja, sim, um critério de juízo. É claro que pode ir muito além da capacidade de universalização de conceitos, situações, dilemas etc. Concordo que numa obra de arte a universalidade diga respeito ao conteúdo, mas isto em nada diminui a importância do critério. Ou a obra é universal ou não é. Por exemplo: a esmagadora maioria do que a indústria cultural produz é arte de ocasião, e morre quando a ocasião passa. Falta a esta arte a capacidade de transcender a ocasião, o que não faltou a Shakespeare. Quando faço esta afirmação, estou avaliando a obra, e não o contexto. É claro que me apoio no contexto, mas a avaliação é da obra: ela transcende o contexto?

Justamente porque o mesmo dilema pode ser repetido em qualquer outra obra, literária ou não, é que ele transcende a história. Se é repetido, pode ser por imitação, mas também pode ser (e é esta possibilidade que me interessa) que o dilema não seja daqueles personagens, mas de todos nós, em um instante ou outro, ou mesmo potencialmente.

Quando avalio que a obra de Shakespeare é universal, avalio a sua possibilidade de tocar, com suas histórias, em situações reais ou psicológicas, suscetíveis de acontecer a todos nós. E quando faço isso, não é o contexto histórico em que foi escrita que conta, nem a origem histórica do próprio critério, mas a obra em si.
Portanto, é um critério objetivo.

sofista said...

Rodrigo,

A respeito de Adorno, e de sua observação de que se ele está errado, então toda a crítica contemporânea está errada. Bem, pode estar. A verdade, se existe, não está, por definição, no número de pessoas que a adotam. A rapidez e a prontidão com que adotamos esse ponto de vista já é, em minha opinião, motivos de suspeita. Dizer que Adorno está certo é mais fácil que encontrar modos de refutá-lo.

E cá entre nós, essa idéia de "experiência plenamente concentrada e consciente de arte" é absurda. Primeiro, porque arte é, antes de mais nada, fruição (para o observador ao menos). Segundo, porque essa experiência concentrada e consciente carrega a afirmação de que um observador deve se colocar diante da obra de arte como ele próprio, Adorno, faz. E isto é totalitário. (Adorno gravou músicas ao piano, com um estilo meio depressivo. Então isto é experiência concentrada e consciente? Ah, tio, perdoe, mas sou mais feliz ouvindo Alice in Chains que seu piano). Querer dizer como cada um deve apreciar a arte (com seriedade) é negar o apelo fundamental da arte: fruição.

Terceiro, porque essa experiência concentrada e consciente da arte mata a própria arte, fechando-a numa redoma de vidro.

Bem, é minha opinião.

Continuemos.

Desculpe a demora em responder. Ando atormentada com a tese. :-)))

Anonymous said...

Oi, Sofista!

Quando afirmo que o juízo é diferente do gosto, tenho em mente que o juízo possui algo do que você esclarece como sendo a objetividade. O juízo se refere ao objeto, ao passo que o gosto opera essencialmente no campo da subjetividade. Isso, de certo modo, também foi assumido por mim desde o princípio, de modo que, entendendo melhor a sua posição e o próprio problema, só posso concordar com a maior parte dos seus argumentos.

A minha desconfiança ocorre, entretanto, em relação à possibilidade de esse juízo para-além-do-gosto encontrar critérios que também não podem ser relativizados. O subjetivo/objetivo não corresponde a uma oposição entre sujeito de juízo/objeto de juízo, mas sim entre concepção específica de arte/concepção definitiva da arte. Não duvido que seja possível encontrar critérios que estão além do gosto, que se prendam ao objeto; mas não creio que seja possível assegurar esses critérios como objetivos no que se referem à arte como um todo, a arte por si mesma. O significado do que é arte é variável, e isso faz com que os juízos sejam também variáveis.

Pois parece-me que um critério objetivo existe em função de uma idéia da arte. Mudando o que se entende por arte, muda-se a objetividade do critério. Se a objetividade muda, bem, ela não pode ser tão objetiva assim. É nesse plano que me situo, sentindo-me desconfortável com o que identifiquei por objetividade – e, creio, o meu problema diferencia-se do seu à medida que não é a impossibilidade de “voltar-se para o objeto” que complica a objetividade, mas sim a impossibilidade de esse “voltar-se para o objeto” se efetivar sem deixar para trás outras valorações da arte que são igualmente possíveis.

Sobre isso, você escreveu:

“Há meios de avaliar uma obra de arte segundo critérios que estejam muito mais relacionados com valores atribuídos à arte que com o mero gosto pessoal. Você pode argumentar que estes valores são subjetivos. Não penso assim. Na medida em que são a-históricos, que valem para-além de sua época, já têm uma medida objetiva.”

Mas por que eles são a-históricos? De que maneira eles podem não ser relativizáveis, e ainda assim servirem para fundamentar os critérios de juízo?

Pode ser que a técnica deixe de ser um critério quando o que resta é apenas a sua presença como meio. Se ela é apenas um “como fazer”, o que poderia ser dito sobre Duchamp, julgando a sua obra por ela mesma? Há obras que não podem ser bem compreendidas sem o cotejo com outras obras, que, por sua vez, representam outras concepções de arte. É o caso da maior parte da vanguarda, certamente, posto que uma “reação” a outras formas (outras técnicas, outros pontos de partida e de chegada) é essencial em suas propostas. Godard, por exemplo, não existiria, como tal, sem que tivesse existido, antes dele, um cinema realista e naturalista. A sua obra constrói seu próprio valor à medida que dialoga com uma outra concepção de cinema. Como poderíamos julgar Godard sem transcender a sua obra?

Isso vai contra o que você escreveu nesse trecho: “Mas a obra de Duchamp tem de ser avaliada em si mesma, e não em comparação com outra”. Contudo, é possível retrucrar a seu favor que, mesmo comparando as obras, o juízo ainda é objetivo, se isso significa que o juízo se atém ao objeto. O que reforça, para mim, que o problema não é a objetividade, nesse sentido de estar atento ao objeto, mas sim a pretensão de encontrar, no rastro desse juízo objetivo, uma idéia de arte que seja absoluta e totalizante. Nesse caso, certamente, haveria um totalitarismo tal como você identifica em Adorno.

Assim, quando eu me preocupo com a historicidade, não é a historicidade oposta à universalidade figurada em obras como a de Shakespeare. É, sim, a historicidade que determina os valores das obras, e, nisso, o próprio significado de arte. É intrínseco à arte renovar-se, contestar-se, recriar-se. Essa transformação, que talvez seja o único dado invariável na definição da arte, parece impedir que algum critério de juízo seja definitivo. Pode ser um critério objetivo, do ponto de vista da relação entre o avaliador e a obra, mas não é objetivo no sentido de se colocar mais próximo da arte como tal. Minha tarefa seria mostrar, por exemplo, que a universalidade, a despeito de ser um critério objetivo (concordando, assim, com você), implica uma valoração das obras de arte (e um significado da arte) assim que é adotada como critério. Essa valoração é que não é objetiva.

Se eu assumo a universalidade como critério, estou afirmando uma idéia da arte. Shakespeare entra, indústria cultural não. Isso não é o mesmo que faz Adorno, quando toma por critério a "experiência plenamente concentrada e consciente"?

Sofista, não se preocupe em continuar o debate, caso não tenha tempo (imagino como deve estar complicado, com a tese). Da minha parte, considero que o mais importante nós já temos aqui: problemas e argumentos que deixam em aberto a reflexão. Fico grato por essa extensão virtual das nossas aulas de Estética (rs), especialmente porque o meu interesse pela área vem aumentando com os estudos do mestrado. Logo, espero que ainda possamos conversar muito mais, sobre este e outros temas. Estou sempre por aqui.

Um grande abraço,
Rodrigo

sofista said...

Oi Rodrigo,

Ao ler seu último comentário, fiquei me perguntando se não estamos em lugares diferentes. Parece-me que estamos enxergando o mesmo problema a partir de conceitos distintos.

Minhas observações não levavam em conta o caráter totalitário ou não, absolutizante ou não de um critério, e sim se é possível ou não avaliar uma obra independentemente do contexto em que foi criada, de outras obras de arte e do gosto do avaliador.

A objetividade de um critério, em meu entendimento, reside na possibilidade de avaliar uma obra por si mesma, mas critérios mudam, são relativizáveis sim. A universalidade em uma obra pode ser um bom critério hoje, p.ex., e não ser em épocas futuras. O mesmo vale para todos os outros. Critérios mudam, conforme os valores que os sustentam (e nisto concordo inteiramente com você), mas isto não altera o fato de que há critérios objetivos (que se referem ao objeto) e critérios subjetivos (conforme valores subjetivos, que apenas expressam agrado ou desagrado).

sofista said...

Você disse: "Se a objetividade muda, bem, ela não pode ser tão objetiva assim." Não penso assim. Uma coisa é o caráter objetivo da avaliação, outra coisa são os critérios adotados (essa distinção está clara no que escreveu, mas preciso revê-la, como verá a seguir). O que muda, em minha opinião, não é o caráter objetivo da avaliação, mas sim os critérios que permitem fazer essa avaliação objetiva. Logo, em meu entendimento a relativização dos critérios (o que não só é possível, como acontece efetivamente) não interfere de modo algum na qualidade da avaliação, mas isto, claro, se e somente se os critérios, sejam quais forem, continuarem se referindo ao objeto, e não ao sujeito. Isto significa que é sempre possível qualquer valoração da arte, desde que se atenha ao objeto. Esta não é, creio, uma posição excludente quanto aos critérios ou totalitária, mas que somente pretende excluir da avaliação, se quisermos que seja objetiva, o gosto pessoal, porque esta é uma medida fraca. Não posso afirmar que a arte de Duchamp não é boa porque não gosto. Posso não gostar e expressar livremente meu desagrado, mas isto não a torna boa ou má arte. O que a torna boa ou má arte está nela, não em meu gosto.

sofista said...

Você afirma que “O subjetivo/objetivo não corresponde a uma oposição entre sujeito de juízo/objeto de juízo, mas sim entre concepção específica de arte/concepção definitiva da arte”. Não creio. O problema subjetivo/objetivo e, insisto, sujeito/objeto não diz respeito diretamente, em minha opinião, a uma concepção específica de arte e uma concepção definitiva. Pode ser, claro, mas a minha posição é exatamente que não deve ser, porque afirmar a objetividade do juízo acerca de uma obra específica, ou modalidade de arte (e não da arte em geral), não é o mesmo que defender uma concepção definitiva de arte, mas apenas e tão somente defender que a avaliação deve partir do objeto, respeitando suas especificidades, e não do gosto individual. Não é o que faz Ortega Y Gasset a respeito da arte de vanguarda? Não é seu agrado ou desagrado que conta na análise, mas sim em que esta nova arte se diferencia da arte realista/romântica.

sofista said...

“Há obras que não podem ser bem compreendidas sem o cotejo com outras obras, que, por sua vez, representam outras concepções de arte. É o caso da maior parte da vanguarda, certamente, posto que uma “reação” a outras formas (outras técnicas, outros pontos de partida e de chegada) é essencial em suas propostas. Godard, por exemplo, não existiria, como tal, sem que tivesse existido, antes dele, um cinema realista e naturalista. A sua obra constrói seu próprio valor à medida que dialoga com uma outra concepção de cinema. Como poderíamos julgar Godard sem transcender a sua obra?”

Acho realmente que uma boa avaliação de Godard ou da vanguarda tem de ser feita a partir deles. A comparação é possível, claro, mas não para valorá-la, e sim para entendê-la em seu contexto, para compreender suas motivações históricas e seu sentido próprio. Mas entender uma arte não é o mesmo que valorá-la. Para entender Godard eu preciso transcender sua obra; para dizer se é um bom cinema, não. Basta analisar se o que se entende (objetivamente) como bom cinema está presente na obra de Godard ou lhe falta.

sofista said...

“Mas por que eles são a-históricos? De que maneira eles podem não ser relativizáveis, e ainda assim servirem para fundamentar os critérios de juízo?”

Critérios objetivos são históricos na medida em que são situados e são resultado de valores que dependem de cultura, de seres humanos etc. Ou seja, são históricos em sua origem, como tudo que é humano. Mas são a-históricos quando o que se tem em vista na avaliação, independentemente da origem humana dos critérios, é o objeto e suas características próprias. O que quero dizer é: ao avaliar uma obra, eu devo avaliá-la conforme o que ela é, e não o momento em que está situada, e seu valor em relação a outras obras. Esta postura, este lugar do avaliador é a-histórico, embora o avaliador seja um ser situado. Porque o avaliador é histórico, os critérios são, sim, relativizáveis, mas a análise continua sendo objetiva.

sofista said...

“Minha tarefa seria mostrar, por exemplo, que a universalidade, a despeito de ser um critério objetivo (concordando, assim, com você), implica uma valoração das obras de arte (e um significado da arte) assim que é adotada como critério. Essa valoração é que não é objetiva.”

Sei não, mas vou discordar outra vez. ))) Talvez o ponto aqui seja o que entendemos por objetividade. Eu tenho de adotar critérios, e ao fazê-lo adotando critérios objetivos, esta avaliação já, é, por isso mesmo, objetiva. Agora, se entendi o quer dizer, você está argumentando que a origem é subjetiva, porque a escolha do critério continua sendo subjetiva. Eu acho que isso, e me corrija se não entendi bem seu ponto de vista, em nada altera a qualidade da avaliação, desde que o critério escolhido seja objetivo.

Bem, acho que hoje é isso.

Não se preocupe, vamos esgotar o assunto. Pode ser que às vezes demore um pouquinho para responder, mas o farei, com certeza.

sofista said...

Por fim, quanto à avaliação do que é arte e do que não é, que se difere da avaliação da qualidade de uma obra específica, ou de um estilo, minha opinião não é muito diferente, embora o problema aqui seja mais amplo e mais complexo. Se é desta avaliação que está falando (e não da de uma obra), então podemos separar o que se entende comumente como arte (e que inclui toda e qualquer atividade criativa) de uma avaliação abalizada. Esta última pode encerrar a arte num conceito fixo, mas adotar critérios como forma de compreender o fenômeno não é, por si só, totalizante. Tanto não é, que estes critérios têm sido cada mais vez amplos, e estão muito mais ligados a uma hierarquização das artes (no sentido de melhor e pior) que propriamente a dizer o que merece e o que não merece ser chamado de arte. Mas que podem ser absolutizados, de fato podem.

Anonymous said...

Oi, Sofista!

Cito o seu último comentário:

“O que muda, em minha opinião, não é o caráter objetivo da avaliação, mas sim os critérios que permitem fazer essa avaliação objetiva. Logo, em meu entendimento a relativização dos critérios (o que não só é possível, como acontece efetivamente) não interfere de modo algum na qualidade da avaliação, mas isto, claro, se e somente se os critérios, sejam quais forem, continuarem se referindo ao objeto, e não ao sujeito.”

Creio que esse trecho sintetiza a sua argumentação. Eu me ponho em total acordo com o que você afirma, e confirmo que, também para mim, parece que estávamos em lugares diferentes. A sua última resposta me trouxe as distinções necessárias para entender o lugar em que você está, e também para esclarecer o meu próprio lugar.

O significado que atribuí aos termos objetivo e subjetivo foi condicionante desse desentendimento. Eu tomei a objetividade como característica de um juízo balizado em critérios invariáveis. Juízo que daria conta do que é uma obra de arte boa e do que é uma obra de arte ruim de maneira definitiva e absoluta. A meu ver, a sua defesa da objetividade tinha essa tese como um pressuposto. Mas, ao contrário, o que você defende é que a objetividade é possível, de um ponto de vista que tem a atenção voltada para a qualidade do juízo, não discutindo, com isso, as molduras dessa objetividade (que são dadas pelas condições históricas do objeto e do sujeito que emite o juizo).

O ponto central da discussão sobre objetividade/subjetividade residiria, então, no que você escreve a seguir: “Agora, se entendi o que quer dizer, você está argumentando que a origem é subjetiva, porque a escolha do critério continua sendo subjetiva”.

Sim. Creio que o termo último do critério é uma subjetividade, que precisa escolhê-los, que precisa instituir um cerco dentro do qual é possível um juízo. A subjetividade, então, estabelece o que é objetivo. Penso, e creio que você concorda, que essa subjetividade, aqui, é diferente da subjetividade do próprio juízo (o que resolve, para mim, uma confusão de termos nesses nossos comentários). Pois não se trata da subjetividade enquanto instância que abriga o gosto do sujeito, mas de uma subjetividade anterior ao juízo. Uma espécie de ato fundador – no qual poderia estar a origem de cada significado possível de arte. Não que isso feche a arte em redomas de vidro. É um ato que implica valoração e criação; algo bem próximo ao que é o artista para Nietzsche.

Acredito que, aqui, conseguimos esgotar a discussão. E só tenho a agradecer, como já havia dito. :))

Abraço!

Anonymous said...

Há ainda um comentário sobre Adorno, que, afinal, motivou a discussão. Adorno é alguém que estabelece critérios objetivos de análise da arte. Discordo de você que ele não avalie as obras pelo que elas são. Pelo contrário, creio que ele elaborou, na Dialética do Esclarecimento, toda uma argumentação a fim de sustentar a objetividade do seu juízo, e fez isso indo até as obras.

É nesse sentido que eu escrevi, numa resposta anterior, que, se Adorno estiver errado no seu juízo, a sua teoria toda deve ser problematizada. Ora, isso ocorre justamente porque é com a tese sobre o esclarecimento que ele afirma os seus critérios. É o ato fundador dos critérios que tenho em mente.

Concentrando-me no cinema: Adorno explica os filmes clássicos pelas sua estrutura narrativa, pelos seus efeitos no espectador, pela construção de personagens. A obra é avaliada por ela mesma. Assim, passamos para a moldura do juízo objetivo. Adorno elegeu uma moldura, e, a partir dela, julgou.

sofista said...

Oi Rodrigo!

Desculpe a demora em escrever. Passei este último mês envolvida exclusivamente com a tese, e ainda nem terminei, mas avancei bem e descobri que tese emagrece. :-))) Acho que vou escrever outra depois dessa. Estou gostando do resultado (físico, se é que me entende). :-)))

Bem, após um longo e tenebroso inverno, eis-me de volta. Não tenho observações a fazer a respeito de seus comentários sobre Adorno. É que me faltam elementos - ainda - para defender ou clarificar (para mim mesma, primeiramente) o que está me incomodando nele e na escola de Frankfurt, e não posso defender um ponto de vista com base em um desconforto pessoal que sequer consigo definir. Estou de acordo com o que disse acima: existe uma objetividade na análise adorniana, mas ainda acho que é algo com que só podemos concordar. Eu quero dizer: não é possível discordar da análise se aceitarmos os pressupostos, porque, até onde posso dizer, toda a argumentação é elaborada exatamente para demonstrar a tese. Então, se aceitamos os pressupostos, é possível ver a tese em qualquer programa de TV, nas músicas etc. Mas eu acho esse modo de raciocinar complicado e com tendências dogmáticas. Em todo caso, como disse, achismos não levam a lugar algum. Então é melhor que eu pense um pouco sobre isso e volte à carga quando tiver mais elementos com que trabalhar.

Rodrigo, obrigada pelo debate. Foi bastante enriquecedor.

Apareça sempre.

Anonymous said...

Sofista!

Então, tese emagrece? rss

Também foi bastante enriquecedor para mim. Estou sempre por aqui, e podemos continuar, depois, este ou outros debates.

Um abraço,
Rodrigo